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“OS CANTOS” by EZRA POUND – intro by Gerald Thomas

Ezra Pound by Gerald Thomas

Cantar um poema já é uma coisa sublime, difícil, quase impossível. Agora,

escrevê-lo sem cantá-lo, mas chamá-lo de Cantos, como se escrevê-lo cantado, assim como um compositor surdo, Beethoven, tendo que imaginar sua sinfonia inteira naquelas cinco linhas de uma partitura… ah, isso é trabalho de um Hércules! Ou de um Ulisses ou qualquer outra odisséia qualquer galaxiana, física, metafísica, já que não se pode “quedar” (uso o

espanhol porque o português não me parece apropriado: ficar, parar, cair…) nas meias verdades ou nas meias palavras ou meias intenções de um trabalho tão completo, mas tão completo que ele se torna VITAL.

Vital e, no entanto, pode-se viver sem ele. De acordo com minhas conversas com Haroldo de Campos sobre Ezra Pound, o que predominava sempre (na minha memória) era um berro. Não, não me entendam mal: ninguém berrava! Haroldo ria de alegria, eu ria do Haroldo rindo e todos em volta gargalhavam dessa inusitada “cantata” de risos e alegria, algo como uma alegoria, uma alegoria Poundiana, pounding in everyone’s heads, ou seja, martelando na cabeça de todos, assim como Hamm martelava a cabeça de Clov em Fim de jogo de Beckett, ou seja, assim como um canastrão (Hamm actor) martelava o seu próprio cravo (clove) de Natal nele mesmo antes de ir pros fornos; essa parecia ser a personalidade, bipolar, ciclopar desse nosso autor controversial no peso e na medida do quilo inteiro: two pounds.

Ezra Pound eram dois:
Aquele que defendia Mussolini e aquele que defendia uma América para a qual nunca mais queria retornar. Mas qual era o Mussolini que defendia? Me pergunto se, como diretor cênico de ópera e judeu, não devo dirigir Richard Wagner por causa da sua conhecida postura e seus escritos (Judeus na música etc) ou mesmo Heidegger e sua filiação ao Partido Nazista: o que fazer desse brilhante pensador? Ou do maestro Herbert Von Karajan? Queimar todos os seus CDs porque também filiou-se aos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial?

O III Reich foi de fato um fato! Um fato tão histriônico que autores hamms como Ezra Pound não poderiam não se deixar afetar por ele. Caminhos tortos talvez, autocensura depois, autocrítica mais tarde porém… durante… enquanto o pano de boca está aberto… a Boca berra histrionismos que o momento não enxerga e o ouvido não ouve, de novo, como um Beethoven surdo tentando imaginar sua 7a Sinfonia naquelas cinco linhas de uma partitura. Os cinco anos de uma guerra e os cinco conflitos interiores de um autor e os Cantos com suas inúmeras inversões do número cinco encantados, com suas navegações embarcadas em alto mar, embriagadas, nauseadas pela ausência de chão, de horizonte, pela ausência de “pra onde ir, de onde viemos e pra onde vamos?”. “TUDO é UMA BLASFÊMIA, uma mentira!” Sem dúvida uma afirmação que não se pode retrucar em nenhum tribunal, e nem Garrincha poderia driblar.

Pound imaginava o inimaginável: como naquele famoso continho de Beckett “Imagination Dead, Imagine”, ele chegou a imaginar um Brasil utópico pro qual queria imigrar (escreveu pros irmãos Campos a respeito), mas um eterno exilado, como um Nowhere Man que se preze, não finca pé em lugar algum. Mas RECLAMA, clama e canta em voz alta sem cantar. Rouco (assim Hemingway o descrevia), louco (assim todos o descreviam), acho que a “Sociedade Internacional dos Lençóis” o processaria pela quantidade de vômito derramado (ou, pelo menos, Arthur Bispo do Rosário, se o tivesse conhecido, quando ainda na Marinha Mercante do Brasil, teria lhe aplicado um bom tapa na cara, fanático por destruir lençóis que era, fio por fio, pra poder, depois, lindamente, brilhantemente, construir suas bandeiras: ambos têm a ver com o mar e no entanto Bispo cantava de verdade!

Pound escreveu e descreveu seus “Cantos” vitalícios e foi tão maltratado quanto Bispo do Rosário, só que não o encarceraram. Bispo se dizia Jesus, Pound se dizia pagão ou ateu, ou anarquista. Mas será que os dois eram o que eram? Acreditavam mesmo no que diziam? Acho tudo encenável. Creio que tudo é encenável, principalmente o “tom” dos Cantos, portanto difícil crer em quem escreve nesse tom.

Ezra se dizia tudo isso, ou nada disso: mas ler os Cantos leva a ter um “feeling” subliminar e é de levantar a pele, ou os cabelos, assim como ouvir ária final de Tristan und Isolde de Wagner, o Liebestod, e não notar a transparência da morte dentro do amor ou do amor dentro da morte; digo isso porque é transparente que Pound queria ser um agnóstico (e provavelmente o era), mas em Os Cantos era também um crente profundo.

Crente numa entidade ainda sem título talvez. Pressupô-la como um deus ou uma deusa ou uma musa ou qualquer coisa maior que o ser que ele próprio era, ou ezra, está implícito em seus escritPtos assim como a cegueira de Tiresias, que nenhuma cegueira tem (a contradição ou a brincadeira de inVERSOS está justamente aí, nessas parábolas). Aquele em que nada crê é justamente o iluminado; o aleijado é justamente aquele que escalara um prédio pra salvar a velha das chamas e assim por diante: Aí está a virada filosófica, aquela que somente Kafka, além de Pound, conseguiu transcender “de verdade” na literatura do século XX. Fez o homem virar inseto. E nem por isso virou inseto. Virou mais homem do que nunca: mas Metamorfoses e ironias tão contemporâneas e tão globalizadas, já na década de 30 do século passado: leiam essa passagem:

Escolas, igrejas, hospitais para o trabalhador Montes de areia para as crianças.
Defronte ao Palácio dos Scheneiders

Ergueu-se o monumento a Herr Henri Chantiers de la Gironde, Banco do Paris Union O banco franco-japonês

François de Wendel, Robert Protot Aos amigos e inimigos de amanhã
“o sindicato mais poderoso é sem dúvidaaquele do Comité des Forges”,
“E que Deus nos leve” disse Hawkwood 15 milhões: journal des Débats
30 milhões pagos ao Le Temps
Onze para o Echo de Paris
(…)

Os que armam 50 divisões, sustentam o exército japonês e estão destinados a ter um grande futuro

Ezra Pound, um Clauzewitz? Um Virilo? Um globalizador caricaturista à la Mario de Andrade? Perdão… Oswald de Andrade? De novo a nau. De novo a Vela, o Rei da Vela, aquela que o vento sopra e que a boca sopra, aquela que se acende numa igreja ou que se iça num barco… nas margens do Reno.

Quem foi o primeiro poeta concreto da História? Mallarmé? Malevich com seu quadro negro colocado em cima da porta? Joseph Albers com seu Branco sobre o Branco? Marcel Duchamp com sua Roda de Bicicleta? Os Irmãos Campos? Ezra Pound? Gertrude Stein no The Making of Americans? Ou terá sido John Cage em sua partitura Silence?

Um deriva do outro. Pouco importa. Pound era um escritor, um poeta, um artista com um peso e VÁRIAS medidas: um predador e, ao mesmo tempo, um perseguido, um foragido. Fugia do quê? Só ele sabia. Um monstro de homem. Me sinto ridículo por ter que compará-lo a um Dante ou um Milton do século XX. Prefiro reconhecê-lo como um Noé, aquele que construiu a arca antes do dilúvio e colocou sua nau, generosamente, a disposição da sobrevivência da espécie animal. Mas Pound não foi Noé. Sua arca é mais concreta, porém impalpável, só conseguimos enxergar seus Cantos através das palavras e da rima, e da FÚRIA e da tempestade (não, não é o Sturm und Drank do século passado, pois Pound era um INDIVÍDUO e não um movimento), e mesmo essa tempestade parece não ter um fim, nunca, nunca.

Mas, como todo gênio, ele tinha a certeza concreta de que a raça humana teria que passar por um dilúvio e começar do zero. Seus Cantos são o berro primal de que tudo aquilo criado pelo homem é torto, sem nexo, pretensioso, já que Aristóteles decretou uma ordem, um início, um meio e um fim que nada valem quando confrontados com a poesia de Yeats ou um país imaginário onde quis passar seus últimos momentos de vida, o Brasil, um lugar moderno, concreto, concretista, totalmente enCANTADO pela obra dele, um lugar chamado imaginário, sobrevivente do dilúvio, aberto pr’aquilo que é novo, mesmo que predador e sofredor, cego e visionário, o refúgio definitivo das contradições do modernismo, FrutoFilho de Pound. Um lugar dos dilúvios constantes onde os Monstros são esquecidos ou onde seus berros se perdem na natureza: esse estranho país chamado nunca, onde tempestades duram pouco e a literatura nunca e o teatro pouco e a música abunda e a natureza tanta e tonta e canta e como! Como numa galáxia, aquela de Haroldo que começou aqui, nos Cantos ou em Ovídio ou em Homero ou …

…..chega!

Gerald Thomas

NYC – 2000

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