ILUSTRADA – Folha de São Paulo
São Paulo, sábado, 21 de abril de 2012
CRÍTICA / ENSAIO
Apesar da tradução imprecisa, livro de Beckett é obrigatório
“Companhia e Outros Textos” exibe obra de um autor que escreve prosa como dramaturgo e peças como romancista
O TRADUTOR TEM QUE SER UM FONOAUDIÓLOGO QUANDO LIDA COM SAMUEL BECKETT, ALÉM DE ALGUÉM APAIXONADO POR ONOMATOPEIAS
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como traduzir a linguagem imaginada? Parece dificílimo traduzir sons ou sílabas cantantes, mas, dependendo do autor, não é. Em se tratando de Samuel Beckett, a coisa é mais fácil e menos pretensiosa do que possa parecer.
Mas o exagero, somado a uma tradução literal -e, portanto, não criativa-, podem matar um autor como Beckett que, mesmo na prosa, é “literatura de palco”.
Beckett precisa ser lido, visto e ouvido. Mesmo que a tradução não prime pela precisão. Afirmo -com orgulho- que esta edição de “Companhia e Outros Textos” precisa ser lida, apesar das minhas ressalvas.
Para entrar na literatura de Beckett, é preciso entrar no seu campo sensorial, na fluência da rima e dos sons, como se fosse uma sonata ou um solo de jazz.
Sons puros, desprovidos de preposições, palavras inusitadas que interrompem frases e pensamentos como atonalidades invadindo uma das fugas de Bach -mais tarde em sua obra, ele as cortaria por total.
Cortaria os obstáculos que impedissem a nossa chegada rápida ao escuro cranial do autor. E o que restou foi o pensamento limpo, o solo seco, a imagem de um esboço sem retoques.
Não se trata somente de manter a linguagem limpa; cabe ao tradutor não complicá-la com sílabas e consoantes que não se encaixam.
O tradutor tem que ser um fonoaudiólogo quando lida com Beckett. Além do mais, tem que ser alguém apaixonado por onomatopeias.
E tem que ter humor. Beckett nos pedia tanto para ressaltá-lo. Infelizmente, a “Companhia e Outros Textos” falta humor.
A maior dificuldade que se encontra ao traduzir Beckett é a palavra “on”, recorrente obsessivamente em sua obra, desde o início. Ela significa tudo, desde “aceso” até “continue” ou “em cima de”.
E quando Beckett usa um “on”, é fácil colocar no papel uma palavra como “avante”; claro, a tradução francesa ou a espanhola deve usar “avant” ou “adelante”.
Está aí um dos muitos erros da tradutora. Não pretendo aqui corrigi-la nem conceber uma nova versão do livro. Mas um simples “vá” ou “vamos lá” responderia muito melhor ao “on”.
Lembro-me de, numa de muitas conversas com o autor, com quem convivi por seis anos, ter falado em usar o “on” como -talvez- “abrir”. Serve para olhos e luz. Não serve, contudo, para “continuar”. Sim, é difícil.
Já que Samuel Beckett escreve prosa como se fosse dramaturgo, e peças como um romancista, o “on” tem que ser “transcriado” mais do que traduzido. “Não posso continuar. Continuo.”
IMPRECISÃO
A tradutora usa, já na primeira frase da obra, o infinitivo “imaginar”. Não é. É “imagine”. A voz que vem ao sujeito de costas no escuro não manda”imaginar”, mas ele a imagina.
Algumas obras não deveriam ser traduzidas. Exemplo dessas são “Faust”, de Goethe, e “Finnegan’s Wake”, de James Joyce.
Como traduzir algo que não é linguagem escrita ou falada, e sim imaginada?
O primeiro poeta concreto da história -Goethe- brinca com os punhos e pulsos que se sujam do sangue a jorrar para que se assine o contrato com a eternidade, o futuro e o aniquilamento do passado.
Assim, um “Me Fist” (meu punho -ou, simplesmente, Mefisto) precisa de um “Me Faust”, ambos “meus punhos”, um em inglês, outro em alemão. Ambos desesperados um pelo outro, e ambos de punho em riste para enfrentar o outro.
Em “Finnegan’s Wake”, já a partir do título, o autor nos vem com “acordar”, “acordar no fim” ou “funeral, funeral do fim”, ou o “acordar da barbatana”, ou o velório da “barbatana” que acorda. Haroldo e Augusto de Campos conseguiram traduzir trechos no “Panaroma”, aproximando e “transcriando” a linguagem de Joyce.
Com Beckett a coisa se agrava, pois, além de romancista, é o maior dramaturgo do século 20. Então, existe a fala falada, a fala oprimida pela mente que a pensa -e a censura do ouvido.
Mesmo em sua ficção, as palavras pulam para a boca que quer e que precisa falar, assim como a vida precisa continuar, apesar da desistência niilista do personagem que ali vive.
Se esse “continuar” se transforma num simples “avante”, a prosa “Falha. Falha de novo. Falha melhor”. O que não é de todo ruim, dentro desse fantástico universo totalmente realista.
GERALD THOMAS é diretor e autor teatral
COMPANHIA E OUTROS TEXTOS
AUTOR Samuel Beckett
EDITORA Globo
TRADUÇÃO Ana Helena Souza
QUANTO R$ 24,90 (128 págs.)
AVALIAÇÃO bom
FOLHA.com
Leia trecho do livro em
folha.com/no1078081