……E no peito do morto
em lugar do coração
uma âncora enferrujada
não é humano, pensaram
o morto sorriu………
De onde nos vem tanta angústia?Aquela sensação de ter uma âncora no peito a nos inflingir ansiedades, pânico, questionamentos contínuos? Mas estamos questionando o quê? Ou quem? A nós mesmos? Aos outros? Nosso Eu mais profundo não responde. E, se responde, a fala não vem clara. Quase inaudível ou rebuscada de metáforas, esconde-se entre murmúrios pálidos. Ficamos a ver navios, se me permitem o clichê. E o tempo se vai, a Nave de Felini se vai, e o nosso coração, pressionado a mais não poder, não nos deixa esquecer os questionamentos. Do mundo, do estar por aqui, do Ser em conflito com sua própria identidade, com a sociedade, com o meio-ambiente, com as loucuras que afligem o Planeta. A âncora pesa, a alma tenta esvoaçar. Ficamos pendurados entre duas possíveis realidades paralelas, enquanto no profundo de nosotros, algo se estilhaça. Queremos a todo o custo, juntar os cacos, pra quê, não sei. Mania de reconstrução. Missão dificil, pra não dizer impossível. Já nos esquecemos da forma antiga e, ainda que não tivéssemos esquecido, essa forma já não tem lugar num país comandado por um cowboy-ventríloquo fantasiado de presidente.
Muito tenho refletidosobre Anchorpectoris a fantástica peça escrita e dirigida por este gênio que se chama Gerald Thomas. Assisti à estréia e vou voltar ao La Mama para, mais uma vez, tentar captar nem que seja um fresta do estranho labirinto proposto por Thomas. Um labirinto de paixão escaldante, que não se sabe onde começa. Terminar, nem pensar. O espetáculo – entre luzes e sombras, à medida que examina/questiona a política americana, alienação, consumismo, falta de memória histórica, contradições nossas e alheias, isolamento, o lugar do Teatro na atualidade – vai se incorporando ao nosso íntimo, como uma tranfusão de sangue de lobo, quente e excitante. Somos energizados de tal maneira que temos vontade de pular da cadeira, ir para o palco e se juntar àquele grupo que ousa trazer à tona, dúvidas e temores subterrâneos, estações passadas de nossa fase umbelical. Gerald Thomas, ele próprio, se expõe sem receio, se abre corpo/alma para quem quiser ver e ouvir e tocar suas angústias, terrores, descrenças – contidas em "Notas de um Suicida" (livro autobiográfico). Acompanhamos Thomas (ou tentamos acompanhá-lo) pelas estradas ínvias dum mapa doloroso mas, ao mesmo tempo, pontilhado de humor, sarcasmo, poesia.
A âncora pesa.Queremos arrancá-la mas sabemos que, como uma flexa certeira, penetrou fundo em nossa carne, que não é tão tenra assim. Também sabemos que, ao arrancá-la, a danada vai dilacerar nossas entranhas e, de quebra, ainda leva nosso coração, trêmulo de incertezas. A dor de tê-la tido conosco, se vai; mas fica outra dor, maior ainda, em seu lugar. A dor do vazio, da insegurança (cadê meu ursinho de pelúcia, mãe?), a dor da tormenta de se estar vivo sem ter um papel definido no Coliseu moderno. Mas… que papel é esse? Precisamos dum papel? Todo mundo tem que ter um papel? Isso está escrito na Constituição do The United States of Mind? Parece que sim. Ah, então não somos nós que dirigimos nossa própria atuação? Parece que não. Então ela é ditada pelo Sistema que, com seus meios persuasivos, invasivos, incisivos, já envenou nosso sangue, infiltrou-se em nosso cérebro? Tudo indica que. Então a gente pensa que está pensando quando, na verdade, a matriz do nosso pensamento já foi alterado? Então a gente luta, grita, protesta, esperneia, gargalha, bebe, arrota, peida, solta fogos, talvez, quem sabe, com uma emoção pré-fabricada à nossa revelia? Não sei. Mas suspeito que.
A âncora é leve.Queremos arrancá-la. Sabemos que podemos arrancá-la mas, o que seria de nós sem a sua presença? Ficaríamos mais leves do que uma pena de garça do Pantanal. Nossa pseudo consistência, aquele "sólido" de que nos fala Thomas se esgarçaria ao mais leve sopro do vento. Impossível conviver com tamanha leveza. Ou seria possível? Não sei. Gerald Thomas nos convida a refletir, a ir fundo no lago azul de um Narciso inventado e, paralelamente nos convida a rir de nós mesmos, a repensar o impensável, a viver, em suma. Ou a morrer, mas… seria esta a solução? Que bobagem a minha, mencionar esta palavra. É tudo o que o Teatro de Gerald Thomas não tenta mostrar. Ao contrário. Nos impele a sair do La Mama com a âncora encravada no peito, com aquela sensação de que a segurança do cais é ilusória. Mesmo assim, recusamos a descartá-la. Vejam só. Nosso medo ancestral a tudo se sobrepõe. Mas também saímos alegres por termos tido a sorte de assistir a uma peça magnífica, montada em apenas 12 dias (outra genialidade de Thomas). Anchorpectoris é um dos raros espetáculos encenados em New York, que sacode nosso comodismo enraizado, e nos impulsiona a ver o mundo sob diferente ótica. Pessimista? Otimista? Não sei. Depende. Ou não depende.Fico eu aqui a tecer conclusões quando no fundo sei que não as possuo. Nem eu, nem ninguém. Anchopectoris não é conclusivo. É elucidativo. Enigmático. Revelador. Provocativo. Cômico. Tudo isso junto e muito mais que talvez eu não tenha entendido. Vem em meu socorro uma frase de Clarice Lispector: "Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento." E eu posso dizer que "vivi" Anchorpectoris,este complexo jogo que não é o da Amarelinha de Cortázar.É um jogo Thomasiano. Brilhante. Original. Único. Que se processa num clima surreal, onírico, fusão do fugaz e do eterno, de incrível beleza sonora e visual. Névoas intercalam-se num espaço dimensionado por uma tela atemporal, onde o corpo é a projeção da sombra. Sombras vivas de força e sedução, eletrizantes. E as luzes? Qual o papel das luzes? A meu ver são personagens em busca duma outra forma de vida. E conseguem. Atuam livremente, nos arrebata para além da cena, para além de nós mesmos, para fora do mundo, e nos traz de volta ao reino do inimaginável.
Estamos todos no palco, como era nosso desejo. Pelo menos, o meu. Ao lado dos admiráveis Stephen Nisbet, Tom Walker, Stacey Raymond e outros atores talentosos. Dançando com Fabiana Guglielmetti, esta fabulosa atriz que transcende a si mesma em seus passos, requebros, mímicas, gestos graciosos e rústicos e cômicos, sobretudo vivos de doer. Fenomenal! Gracias, Fabiana!
Gerald querido, muito obrigada, é só o que consigo te dizer no momento. Ainda estou sob o impacto da magnitude de sua obra incomparável. Através dela andei descobrindo que toda certeza é provisória. A brisa que passa, um bater de asas, uma simples garoa em nossas convicções, podem mudar o rumo da jornada. Somos uma embarcação, não digo à deriva, mas frágil demais pra conter o próprio destino. Esta âncora-dor – unidade dos contrários – me fez relembrar o quanto é vasto o caminho do conhecimento. De nós mesmos. E dos outros. Que somos nós, em ângulo adverso. Thank you very much, Gerald Thomas, por manter viva a imagem desta âncora em nós, esta dor seca e permanente, a nos alertar sobre o perigo mortal do conformismo. Anchorpectoris é uma dor revolucionária. Uma dor que arrebenta limites.
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Tereza Albues
New York, 13 de março de 2004