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“F.E.T.O.” – Gerald Thomas’s latest production (July 21 through August 28, 2022 SESC São Paulo)
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Entrevista com Gerald Thomas – por Marcio Tito e Daniela Coutinho
“Todos os artistas são um e o mesmo” – Uma Entrevista com Gerald Thomas – Por Marcio Tito e Daniela Coutinho
Publicado em por Deusateu

F.E.T. O – Estudo para
Dorotéia Nua Descendo a Escada
F.E.TO – Ensaio para Dorotéia Nua Descendo a Escada, foi o argumento para esta entrevista especial com Gerald Thomas. Contudo, no olho do furacão de uma inteligência indomável (e impossível de ser captada por uma entrevista tradicional), optamos pela configuração de um texto-entrevista que pudesse apresentar não o entrevistado, mas o ambiente magnético de suas divagações sobre música, arte, política, relações internacionais, criatividade e, sobretudo, a importância da cultura.
F.E.T.O, a mais recente direção de Thomas, promove uma abertura quase mística e quase atômica ao universo (quase completo) da obra de Nelson Rodrigues, e esta decisão estética se confirma na forma como o diretor dispara “contra” as certezas da própria montagem. E parece importante demais apresentar este material com cada uma de imaginações e hesitações. Com interjeções e aspas que se tornam parênteses.
É, sobretudo, uma sala com acústica especial (de onde se pode ouvir e ler ideias interessadas em ideias).
Boa leitura!
Entrevista e introdução – Marcio Tito
Edição, transcrição, captação e revisão – Daniela Coutinho
MT: Bom, vamos lá. Gerald, quando eu percebo seu trabalho no “F.E.T.O”, bem rápido eu coloco pra mim mesmo a ideia da tradição numa conversa com o contemporâneo e como a sua estética se coloca entre esses dois lugares, os percebe e os coloca em fricção. Queria saber como você sente essa colocação.
GT: Não tô… não tô te seguindo. Não tô entendendo a pergunta… até agora.
MT: Quando eu assisto o seu trabalho… No começo da minha crítica eu coloco o exemplo de um filme e falo sobre a ideia da tradição e como o seu teatro está observando novos valores, no contexto ali da obra do Nelson e no contexto da sua produção. Como que te soa essa leitura?
GT: Não, não… Eu não saberia criar se eu tivesse preso a ficar olhando uma coisa que já aconteceu. Eu ficaria doido. Quer dizer, eu já sou doido. Agora, eu não teria a liberdade que eu tenho, entende? Já basta a minha própria obra, que fica me puxando pra um lado chato que é o armário, que fica ali “entra”, “volta”. Eu não tenho muito saco pra ficar olhando tradição. Eu não sei se você tem meu livro…
Você viu fotos minhas, jovem? Eu já era muito doido, entende? Saí de casa com 13 anos e não tenho muito saco pra ficar olhando os outros, o trabalho dos outros, o que os outros pensam, fazem, falam. Menor vontade… Eu sofro de um mal chamado ‘muita cultura’. Eu tenho muita cultura, eu sei demais. Não caibo aqui dentro, entende? Em todas as áreas: arquitetura, medicina… Medicina não, claro. Medicina eu não sei porra nenhuma. Enfim, arquitetura, filosofia, história e tal. Então eu, quando ando pelas ruas… É o seguinte: eu não sei me divertir. Eu não sei me divertir. Eu não sei ouvir Jazz e dizer “ah, que delícia”. Eu já fico identificando o ritmo, o que o baixo, o que a guitarra tá fazendo. Fico tentando encaixar essa impressão em algum lugar. Mas isso quando eu não tô trabalhando. Isso quando eu tô ouvindo. Ou quando eu vejo o prédio do Frank Gehry em Bilbao, o Guggenheim… Eu fico, sei lá, tentando encaixar aquilo, comparar com Frank Lloyd Wright, sabe? Ou com o Gaudí, Bauhaus. Enfim, eu não relaxo! Eu não relaxo nunca, esse é meu problema. Mas quando eu trabalho, eu relaxo.

MT – E como que o Nelson Rodrigues entra nessa equação? Onde ele faz parte do seu imaginário? Como ele se coloca?
GT – O Nelson Rodrigues me pentelha desde 1985, quando eu tentei comprar os direitos de “Dorotéia” e não me deixaram. Eu tentei comprar os direitos. Eu conheci o Nelsinho Rodrigues – o filho – na prisão. Eu fui para o Brasil visitar os presídios políticos em 1978 – eu tinha 24 anos – como representante da Anistia Internacional.
Eu posso te mandar o recorte do JB (Jornal do Brasil), uma página inteira. Eu cheguei no Galeão, no Rio, era pra ser anônimo e o JB me dedurou com foto de frente e de lado, como no DOPS. Eu falei “putz, acabou minha vida no Brasil”. Eu anônimo. O JB era o que se lia no Brasil na época. Mesmo assim eu consegui ainda ir visitar os presídios políticos e falar com os presos, os advogados e Dom Evaristo Arns, Helder Câmara, todo mundo que dava apoio naquela época. E eu fiz muitas amizades, como o Nelsinho Rodrigues, como o Alex Polari de Alverga… essas pessoas.
É claro que eu já fazia teatro na época na Inglaterra, eu me aproximei do Nelsinho Rodrigues e achei que muito mais tarde isso ia surtir algum efeito na família Rodrigues, mas não fez nenhum efeito. Eles não me deram os direitos, porque acharam que eu ia distorcer o “Doroteia” e de fato eu distorci!
MT – Eu ia falar isso. (risos)

GT – É! De fato, eu distorci geral. Mas isso agora! Na época, em 1985, eu respeitava mais ou menos o texto, como eu fiz com o Beckett. Quando o Beckett me dava uma prosa pra fazer, eu não tinha que respeitar nada, porque era uma prosa que não tinha sido montada e eu montava em primeira mão, então não tinha diretriz nenhuma pra respeitar. Eu fazia o que queria fazer. Eu nunca montei uma peça do Beckett! Uma peça formal, ele não queria que eu montasse. Ele queria que eu montasse as prosas, os livros. Ele aliás me pediu que eu montasse o “Esperando Godot”. Eu só montei depois da morte dele, na Alemanha. Eu fiz um “Esperando Godot” depois da morte dele. Uma doideira. E aí o morto passou a ser o próprio Beckett, que tinha morrido dois meses antes. Uma total infelicidade.
MT – Gerald, pela sua estrada, pelo ponto em que você começa e onde você trabalha hoje, como você vê e a mudança de percepção do público? O que te parece uma plateia hoje, o que te parecia antes? Mudou muito, mudou pouco?
GT – Muito, mudou muito. Eu me lembro em “Eletra Com Creta” por exemplo – que é 1986, eu acho – e aqui no La Mamma em Nova Iorque, por exemplo, era um bando de punks, nariz furado e tatuagens no rosto. Um bando de doidos na plateia, vibrando! Né? Era um hang out, de heroína e…. era uma continuação de um lugar de música punk rock como o CBGB’s, era uma continuação. Saiam de lá, tocavam Sex Pistols e vinham ao La Mamma assistir um Beckett, alguma coisa assim, uma performance nossa. Ou no Museu de Arte Moderna do Rio.
Ia Caetano, ia Gabeira… enfim, essas pessoas iam, mesmo que de madrugada, no museu de arte moderna no meio do nada, no Aterro do Flamengo, um espaço nada convencional. Um museu de arte moderna sendo usado como teatro, improvisadíssimo ali numa arquibancada quase caindo. E iam ver, iam assistir. Hoje em dia é confortabilíssimo, né? Aquelas cadeiras e tal. E a plateia um pouco mais velha. Você vê uns cabelos grisalhos e tal. Mudou muito! Mudou muito. Mudou muito…
O próprio jornal, a Folha de São Paulo. Já foi um jornal de vanguarda, que guiava as pessoas na direção do vanguardismo, dava diretrizes do que estava acontecendo e hoje em dia não tem esse valor. Aliás a vanguarda não tem valor nenhum. Aliás, não tem vanguarda. Não tem vanguarda, não tem mais porra nenhuma. Aliás não tem porra nenhuma! Aliás… Eu sou um dos que destruiu esse tipo de coisa. A iconoclastia destruiu isso. Aliás eu me sinto um agente desse vírus, eu me sinto uma bactéria. Vamos dizer: se o vírus é um organismo vivo feito por pequenos ‘alguma coisa’. Moléculas, né? Devem ser moléculas…
Eu sou uma dessas moléculas, que ajudou, através da iconoclastia, a quebrar o que existia no final do milênio passado, destruindo todas as colunas que existiam da chamada cultura. Colocando tudo debaixo da lente do microscópio, examinando tudo o que estava quebrado e despedaçando ainda mais, explicando ainda mais.
Aí você pode até dizer que alguma coisa estranha aconteceu no início desse século, da qual eu sou uma vítima quase direta, que é a queda do World Trade Center aqui na cidade (de NY). Eu fui vítima direta, que é a queda, o colapso mesmo de dois edifícios. É uma ilustração quase perfeita do que eu estou dizendo. É o colapso mesmo de dois ícones, ou um ícone vezes dois. É o que o Andy Warhol fazia: um ícone duplicado. Andy Warhol total! Enfim, depois disso não surgiu nenhuma coisa, nada absolutamente significativo, exceto essa merda de Facebook, Instagram, essas coisas que só duplicam besteira. Só fazem mesmo é avançar fake News, avançar Donald Trump e essas merdas.

MT – Você percebe algum papel do teatro nesse momento de reformulação ou de pós-destruição desses valores? Ou estamos cada vez menos significativos?
GT – Eu não percebo nem o papel da música, porque as pessoas que participavam da música de protesto na década de 50, 60 – Bob Dylan, Caetano Veloso, Chico (Buarque), Geraldo Vandré – Pessoas vitais, que foram importantíssimas na música de protesto de todos os países do mundo, mas eu acho que Bob Dylan seja talvez o cabeça de tudo isso, Jimi Hendrix, Woodstock… Cadê? Cadê qualquer pessoa se manifestando em qualquer…? Você encontra aquelas pessoas hoje em dia.
A Gal Costa, que eu dirigi em 94, é a mesma Gal costa que está fazendo comícios contra o Bolsonaro em alguns teatros do Brasil. E o Caetano é o mesmo Caetano que tá aí no Instagram falando do Lula –eu vi hoje uma postagem. Mas essa arte, que na Inglatertra se chama de Agit Prop, ‘Agitação Propaganda’, uma coisa que o Trotsky fez acontecer através da propaganda bolchevista… Não tem. Não tem, não.
MT –É, são muitas questões. Tentando reaproximar um pouco do que a gente pôde ver no ‘F.E.T.O’… Tudo isso, no começo da conversa você coloca que não tem tempo de olhar para trás e tem que produzir…
GT – Não é que eu não tenha tempo, não. Eu não quero mesmo. Se eu fizesse isso, eu me perderia no passado e não faria nada para o futuro. Eu acho que eu sou igual a muita gente, não tenho interesse, não é tempo. Interesse!
MT – É interesse. Disponibilidade às vezes, né?
GT – Disponibilidade, é!
MT – E, portanto, como que você inscreve seu teatro no tempo presente? Quais são os procedimentos que você adota para não falar com esse passado que não nos interessa, que não te interessa?

GT – Não, eu não faço isso. Os acadêmicos é que fazem! Coitados dos acadêmicos que têm que achar um termo aí qualquer. Eu não sei, não. Eu não faço nada. De vez em quando eu leio algumas coisas, como eu li o teu (F.E.T.O – Estudo para Dorotéia Nua Descendo a Escada – Por Marcio Tito), achei magnífico. Achei o que a Gabriela Mellão escreveu, fantástico. O Edward Pimenta…
Depoimentos de plateia achei fantásticos. As pessoas deixam depoimentos no Instagram maravilhosos. E acho muitos críticos bobos, sabe? Porque é muita crítica! E muita crítica boa também. Dilúvio, por exemplo, recebeu 48 críticas! E muitas fantásticas, muito boas. Só que com a quantidade… É a mesma coisa: com o crescimento do número de grupos de rock, você esquece o nome. Você esquece o nome! Quando eu era adolescente existiam 10 grupos fantásticos de rock, você sabia todos eles. Led Zeppelin, The Who…Na década de 80 você já não sabia mais o nome de ninguém, porque era tanta coisa! Entende? “Quem são esses agora?” Então é a mesma coisa… vai se pulverizando, vai dissolvendo.
MT – Você ainda frequenta muito teatro?
GT – Eu não vou a teatro.
MT – Não?
GT – Não. Não vou mesmo. (risos) E eu deixo isso categórico num videozinho que vocês viram ali no início (da peça), antes da cortina abrir. Eu odeio teatro! Eu odeio pintura! Eu odeio! Eu odeio mesmo! Eu não consigo, eu não consigo. Não consigo. Eu só vejo defeito. Eu vou a teatro e nos primeiros 5 minutos já vi todos os defeitos. Eu olho pra coxia, eu vejo a perna balançando, eu vejo o refletor desafinado, eu vejo a mão do contrarregra. Eu só vejo defeito.

MT – Essa tendência que eu vou citar para você ela está presente na literatura, no cinema, na dança, em tudo. É a ideia da auto-ficção, que em alguma medida permeia muito da produção de hoje. Como que te parece isso?
GT –Ela não tá presente na literatura. Eu acabei de comprar tudo do Ian McEwan, por exemplo. Não tá presente na literatura. Eu adoro ler! Eu escrevo feito um doido. Varo a madrugada escrevendo. Mas, por exemplo: eu também publico resenha, eu sou autor de 12 livros. Eu tô escrevendo agora ‘Todos os artistas são um e o mesmo’, que começa com esse fragmento que a Ana Gabi estava falando ali antes da cortina abrir. “Todos os artistas são um e o mesmo”.
MT – Essa é uma das falas mais marcantes do trabalho para mim. Eu achei uma coisa muito forte.
GT – Entre Bartók, Duchamp, Monet… É tudo igual. É tudo a mesma preocupação. A preocupação em reduzir tudo que se vê, o planeta inteiro, aos dois olhos, ouvidos, nariz e boca. É sugar o planeta, sugar o universo inteiro, as galáxias se possível, aos sentidos. Basicamente todo mundo faz isso, quer fazer isso, quer poder fazer isso. É basicamente isso.
MT – Assim como eu te coloquei a plateia, a transformação da plateia ao longo desse tempo, acho que parece evidente que os artistas e as artistas também tenham se transformado. Como tem sido sua relação com os/as artistas do seu espetáculo? As atrizes e os atores. Como é essa conversa? Ela mudou muito de quando você dirigia antes e dirige agora?
GT – Mudou. Eu rio. Eu ria mais. Eu dava verdadeiras gargalhadas. Outro dia eu tava vendo aquele programa ‘Persona’ (TV Cultura), que eu gravei em 2019, quando eu fui lançar o livro das peças. Eu nunca tinha visto. Eu gravei, mas eu nunca vi. Aí eu tava vendo outro dia pela primeira vez… Eu vi o que a Ana Kfouri falava – acho que era a Ana Kfouri. Quando a gente está no estúdio, ali a gente vê o que entra de gravações de outras pessoas, mas a gente não vê de verdade. A gente vê ali, mas aí tem os contrarregras falando entre si, a gente não fica prestando atenção. Aí eu ouvi o que ela dizia, falava “você dava gargalhadas, você rolava de rir durante os ensaios” e é verdade! Eu rolava de rir! Eu me divertia demais. Quando o ator leva muito a sério o que ele tem a dizer, eu rolava de rir.
O Ítalo Rossi, Sergio Brito, Tônia Carrero… Faziam “Mas eu… estou aqui agora” e eu rolava de rir. Aqui o Julian Beck e o George Bartenieff faziam coisas muito engraçadas e eu me escangalhava de rir. Hoje, 40 anos depois, eu rio menos, porque eu acho que já me acostumei à canastrice, sabe? A Fernanda Montenegro até hoje – porque a gente se fala todo dia – ela ri igual, ela é atriz. Mas ela ri mesmo, dela própria. A gente vai se acostumando a macaquices no circo da vida. A gente vai se acostumando. Então acho que a própria vida vai me tornando mais triste. A falta de dinheiro, sabe?
O fato de eu estar perdendo… eu tô sendo despejado! Isso tudo vai… “pô, mas por que eu tô sendo despejado? Eu tenho um sucesso inacreditável!”, em todos os campos, mas eu tô sendo despejado. Eu fui roubado, então não tenho dinheiro. Enfim, isso é outro assunto. Mas me deixa numa amargura de dar úlcera! É uma doideira. O fato de eu tomar café exageradamente também me dá úlcera (risos). Mas eu me divirto! Eu gosto dos atores, eu adoro eles! Gosto de conviver com meus cúmplices e espero que eles gostem de mim tanto quanto eu gosto deles. De vez em quando, claro, tem umas brigas, né? Porque tem a cama também. A gente é meio casado, sabe? Tem essas coisas.
MT – O “F.E.T.O.”, talvez para quem pratica teatro, pra quem é da área, parece uma obra realizada em processo. Não parece que você tenha chegado ali com o material e dito ‘olha é assim, é aqui, pra lá…’. Ao mesmo tempo tem uma engenharia e uma arquitetura de cena, de maquinária, de luz. É processo? É muito do que você já queria?

GT – É processo. É work in progress. Eu trabalhei muito com a Fabi (Fabiana Gugli), com a Lisa (Lisa Giobbi) e com um dramaturgista chamado David George, aqui de Chicago, antes de ir para o Brasil. No Zoom, assim como a gente tá agora. A Lisa aqui (em N.Y.). É ela quem voa. A Lisa é quem faz os voos. A Fabi é minha atriz, foi minha mulher durante muito tempo. 24 espetáculos com ela. A Fabi tá comigo desde 99, desde “Terra em trânsito”. Já nem sei mais quantos espetáculos. A gente trabalha em inglês. Era pra ser ‘Dorotéia’, não tinha a menor dúvida. Era Dorotéia! A gente estava com o texto na mão. E o David George é um dos grandes especialistas em Nelson Rodrigues. Ele tem textos, como nesse livro aqui (Flash and Crash Days – Brazilian Theater in the post-dictatorship period), tem um texto em que diz – em um livro de 35 anos atrás – que eu deveria encenar Nelson Rodrigues. Wagnerianamente, ele diz, sem palavras. Eu devia encenar Nelson Rodrigues sem palavras.
MT – Uau!
GT – Mas eu nunca mais me lembrei disso! E o próprio David George foi o dramaturgista desse negócio. Mas ele também não se lembrava disso! Ele não se lembrava que tinha publicado esse negócio. No meio do processo em São Paulo, e o David no Zoom em Chicago, a peça foi virando… foi virando essa coisa!
MT – Wagneriana!
GT – Wagneriana. E a gente quebrando as palavras e eu tentando e achando ‘mas não tá dando certo…’. Eu não estava conseguindo entrar. Eu me lembro do Raul Barreto: “Doroteia morreu!” E eu falava: “ah, mas isso tá soando horrível!”. (Dá a fala “Doroteia morreu” em várias entonações diferentes). Nada dava certo! ‘Ah, vamos gravar e você vai ser dublado!’, fomos pro estúdio gravar e nada dava certo! Não conseguia. ‘Vamos lá, vamos gravar em coro’. (imita coro) “Do-ro-tei-a mor-reu!”. ‘Não dá! Não dá!’ (risos) ‘Vamos lá, vamos tentar tudo! Vamos tentar com todos os hinos’ (canta) “♫Doroteia morreu ♫”. Não, não deu.
MT – Gerald, agora que você cercou mais o assunto da Dorotéia, eu fiquei pensando enquanto eu assistia: Você elege Dorotéia porque é seu texto favorito ou era o que te dava mais ambiente para sua criação junto ao texto?
GT – Quando o Rubens Correa leu todos os textos do Nelson – todos! Toda a obra do Nelson numa única noite… Numa única noite ele leu toda a obra do Nelson! Em 1985… Com guaraná. Guaraná mesmo, ralado na língua do pirarucu. Índio mato-grossense que ele era. Quando chegou em Doroteia eu falei: ‘Peraí, calma’. Nesse estado que não é de se ficar muito calmo, né? (risos) Mas eu falei ‘Peraí, calma. Leque? Como é?’, ‘Viuva … não nasceu… como é?’. Eu pedi pra ele voltar, ler. Porque é Kabuki, é Teatro Nô, é japonês, uma coisa estranhíssima. E aí ficou na minha memória o “Doroteia”. E anos depois eu conversei com o Eduardo Tolentino, do Grupo Tapa. ‘Ah, você devia fazer Nelson Rodrigues’, e eu falei ´É, eu tive essa experiência com o Rubens’. Ele tinha visto muitas vezes o “Quatro Vezes Beckett” no Rio. Dorotéia é uma peça interessante e ficou entre as peças míticas do Sábato (Magaldi). O David George trabalhou muito com o Sábato. E aí ficou-se no “Doroteia”, inclusive porque tem menos personagem que as outras. São sete. Não tem 23 como “Álbum de família”, não tem 70 como “Anjo negro”, enfim… Dá pra fazer com campo reduzido. Mas “Doroteia” ainda é minha preferida, mesmo.
MT – Que interessante. Você fala onde você queria chegar e sobre o processo até alcançar o que te parecia que fosse a intenção. Você alcançou isso? O “F.E.T.O.” é um trabalho que você diz ‘Completo. É o que eu gostaria.’?
GT – Não, não. Imagina! Como você mesmo descreveu, é em processo. Dada a chance, se eu tiver essa oportunidade, eu vou cavalgar com ele até onde as Valquírias cavalgam no Anel dos Nibelungos, vão pra quarta peça e destroem o castelo de Valhala. Eu posso dizer isso de um monte de espetáculos. E muitos espetáculos não chegaram até onde deveriam ter chegado.
MT – Mas está na direção? Tá no caminho certo?
GT – Ah, eu acho que sim. Eu adoro… Tô muito orgulhoso do que eu fiz. Eu tô muito orgulhoso do que eu fiz nesse ano de 2022, com “g.a.la.” – eu adoro “g.a.la.” – com a Fabi, adoro “Terra em trânsito”, com a Fabi. Eu adoro o que eu tô dividindo em cores, o chão tá dividido em cores: marrom, azul e vermelho. Então eu tô começando a fazer uma palheta de cores. Eu como pintor estou fazendo essa palheta de cores no chão.
MT – Gerald, no começo da conversa você fala sobre outro momento de criação, porque havia também outro momento de apresentação, num museu no aterro… uma coisa muito diferente do ambiente criativo mesmo. Tentando criar aqui um diálogo maluco entre o artista daquele momento e hoje: como você acha que, do passado, você veria o seu trabalho no presente?
GT – Ahn… É… Como eu veria? Eu não sei. Isso é misterioso, né? Como é que qualquer artista veria ele mesmo no futuro? Sabe, se você viu “2001, uma Odisseia no Espaço”, as últimas cenas são aquelas que ficam na tua cabeça: ele velho, vendo ele mais velho. Ele mais velho, aquilo é apavorante. Você no cinema dizendo ‘meu deus! Será isso? Será isso?’, até que ele vira um bebê, né? Ele vira um bebezinho!
Eu me lembro… era o dia mais frio do ano em Londres. Devia estar -20°C. Eu saí do cinema no centro de Londres, o chamado West End em Londres e eu fui andando através do Regent’s Park de madrugada. O Regent’s Park dá em Primrose Hill, que é um morro. A minha família morava em Hampstead, lá no norte de Londres e eu ia subindo aos prantos e a lágrima congelava mais ou menos aqui (na altura da bochecha), sabe? E eu era uma vela que congelava. Dizendo ‘o futuro é o futuro, o futuro de todo mundo é se olhar no espelho (inaudível – a conexão falhou). Mas enfim, é tão impactante aquela coisa de se ver no futuro. É uma coisa meio Edgard Allan Poe, meio Isaac Asimov, é uma coisa meio… Uma coisa de túmulo, né? Uma coisa de corvo, de você se ver no futuro, morto ali.
MT – E é mais fácil fazer isso com outro artista, enquanto analista? Por exemplo: Como te parece que seria o próprio Nelson Rodrigues acompanhar a sua “Doroteia” hoje?
GT – Eu não gosto muito da figura do Nelson, sabe? Eu tenho um repúdio. Porque afinal das contas, por mais que a gente goste dele, ele dizia que mulher gosta de apanhar. Ele disse isso. Pode ser polêmico, pode ser isso e aquilo, mas ele é aplaudido dizendo coisas absurdas nesse sentido: ‘a mulher gosta de apanhar’. O brasileiro repete isso sem pensar muito o que essa frase realmente significa. Hoje, com o movimento “Me too” e essas coisas, ficar repetindo que Nelson Rodrigues é fantástico, com tudo o que ele disse – de bom e de ruim – é terrível! E a figura dele (imita o Nelson) eu não… Eu sou muito fã de outros dramaturgos. Bom, você sabe, né? Beckett e eu… Eu sou muito fã de Tenessee Williams.
MT – Brasileiros. Algum, alguma para citar?
GT – Brasileiros… Qorpo Santo, eu li muita coisa. Eu gosto muito. Ele é avançado pro seu tempo, né?
MT – É.
GT – Eu não conheço o Arthur Azevedo. Confesso que não li. O Vianinha eu gosto, mas não é o teatro que eu faço. Mas eu gosto. Eu acho muito legal, muito divertido e politicamente, é uma porrada.
MT – Gerald, pra gente não ficar com o material muito extenso e difícil de lidar depois, eu vou fazer algum encaminhamento aqui. É sempre bastante aberto e quase abstrato. É muito difícil ver você falando essencialmente de teatro. Você sempre atravessa o assunto do teatro com a música, com a literatura, com a própria cultura pop, com a contracultura…
GT – Porque na verdade meu teatro é isso.
MT – É! Tanto é que eu tento dar esse tratamento para o meu trabalho também. O que está sendo feito de arte hoje que realmente nos diz alguma coisa? Que arte está dizendo mais?
GT – Eu acho… eu levo muita porrada por dizer isso e as pessoas gostam de não gostar do Damien Hirst. As pessoas adoram falar mal desse cara, por causa da magnitude, do tamanho da obra dele, de quanto custa, porque é caro. O que ele fez em Veneza há 2, 3 anos atrás (Treasures from the Wreck of the Unbelievable) … há 5 anos, em 2017. Foi aquela coisa do fundo do mar. Caríssimo! Tesouros do fundo do mar.
Ele botou desde o Mickey Mouse até… tudo! Filmes, joias no fundo do mar, deixou tudo ali apodrecendo. Claro que ostras e mexilhões foram se juntando ao Mickey e escafandristas foram lá, fingindo que estavam descobrindo esse tesouro, com grandes guindastes e câmeras, como que ‘descobrimos esse grande negócio’ e tal. E era um Mickey todo despedaçado, claro, pela corrosão do mar. Isso foi exposto no ‘Palazio Grassi’, na Bienal de Veneza de 2017, junto com um Netuno gigantesco de 8 andares de altura e vários outros artefatos. Eu achei muito irônico, achei muito engraçado fazer uma exposição de “antiguidades” de milhares de anos atrás, como se fossem tesouros de piratas, com uma coisa moderna do século XX, Disney, né? As pessoas: ‘Mossa, que horror! Que mal gosto’, assim como se estivessem chocadas com o urinol do Marcel Duchamp ou alguma coisa assim. Eu adorei, achei engraçado. Eu gosto, eu adoro o Damien Hirst. Adoro mesmo.

MT – Me parece ter um pouco de artes plásticas, de performance, de representação…
GT – É tudo junto.
MT – Esse hibridismo que vai nos interessar mais nesse momento?
GT – Eu acho que é híbrido mesmo! Como o tubarão dele, esquartejado, também é. Como as coisas dele são. Como o próprio ato de comprar de volta a obra dele, inflacionada, na intenção de denunciar a besteira que tudo isso é. É o próprio capitalismo, imbecil como é. Para um colecionar dar o dobro do que ele mesmo deu. ‘Olha só, você é um otário! Eu comprei por £25 milhões e você dá £50 milhões. Quer? Toma aqui! Eu faço lucro em cima do lucro’. Enfim, é esse jogo idiota.
Mas eu gosto do Ai Weiwei, eu gosto daquele irmãos Chapman que recriam uma guerra inteira numa mesinha de pingue-pongue – tipo “Apocalipse Now” numa mesa de pingue-pongue. Eu gosto das pessoas que fotografam suas camas, com todos os cigarros apagados e notas de dólar enroladas pra cheirar. Aquelas coisas, os modess todos ali de sangue, o dia a dia passa a ser uma coisa preciosa já que a gente conseguiu ficar mais um dia vivos.

MT – Gerald, pra tentar algum encerramento, uma pergunta que eu sempre via o Antonio Abujamra fazendo e eu acho bastante pertinente: Qual o maior erro que cometem ao falar sobre você – e sobre a sua obra, automaticamente?
GT – Não considero erro, mas acho que ninguém conseguiu me entrevistar até hoje, de verdade, sabe? Porque não existe tempo, não existe calma. Para entrevistar de verdade, não pode ser nesse frenesi. Isso aqui (online) tem que ser no berro, porque trava de vez em quando, a palavra não atravessa, ‘tem 40 minutos, tem que renovar!’ É sempre assim. Tem que ser com calma. A revista Rolling Stone quando entrevista faz uma coisa de 4 horas, por 4 dias, com 4 repórteres. Então é assim, com calma, você vai pegar um café e todo mundo está em poltronas. O gravador fica ligado e finge que não tá ali. Todo mundo ri, todo mundo à vontade. E aí rola uma conversa. E é uma conversa que vai em todas as direções possíveis.
MT – É um processo.
GT – É um processo. Pode ser uma entrevista, pode ser que você fale, pode ser que você não fale. Se você não falar, marcam mais 4 dias e mais 4 dias até tomar algum tipo de corpo, até que todo mundo fique mais ou menos contente. Isso eu considero uma coisa legal. Uma pequena biografia. No Brasil se fez uma coisa parecida com a revista “Bondinho” uma época. Uma revista que marcou uma coisa incrível. Uma revista da contracultura que, por incrível que pareça, o (mercado) Pão de Açúcar financiou. Foi marcante na contracultura. Pesquisa para você ver: Bondinho. Paginação fantástica e tal. Hoje em dia as perguntas são todas de uma forma que demandam uma objetividade que a gente nem sempre tem. Então eu acho que enquanto essa objetividade for perguntada, a resposta nunca vai vir à altura, entende? Só isso. Mas fora isso tá tudo certo!
MT – Tá certo!
GT – Porque a gente não é objetivo no nosso trabalho. Por que a gente tem que ser objetivo nas respostas? Não tem um porquê! A arte não é uma coisa objetiva. Ela é altamente subjetiva, mas quando a gente tem que dar as respostas, a gente tem que ser objetivo. Não faz sentido algum!
Olha o Jackson Pollock, por exemplo. Jogava tinta ‘pá, pá, pá’, mas aí: ‘Ô Pollock, o sr. poderia me dizer o que o sr. pretende com tudo isso?’. ‘Porra! O que que eu pretendo? Como assim o que eu pretendo com tudo isso?’. Como assim? Você entende? Aí perguntaram uma vez assim para o Charlie Parker (saxofonista) ‘O que você pretende com isso?’. ‘Pô, o que eu pretendo com tudo isso? Eu sopro nessa porra desse negócio!’. É uma coisa que, literalmente, as pessoas usam instrumentos porque não querem usar as palavras. Eu sou bom de palavras, não é isso que eu quero dizer. Eu uso imagens pra substituir a palavra, eu também uso palavras pra preencher as imagens, mas não quer dizer que a razão preenche o discurso que descreva as palavras.

“Ai Weiwei é um artista, designer arquitetônico, artista plástico, pintor, comentarista e ativista social chinês”.
MT – Falar com você tem uma coisa que é um pouco rara nos outros artistas e nas outras artistas, porque você fala como fala sua própria obra. Em geral os e as artistas falam como quem realizou a obra. Você não fala do ponto de vista da autoria, você fala do ponto de vista do objeto artístico. Me parece…
GT – Eu sou muito crítico. Eu sou crítico de mim, eu sou crítico deles, eu sou crítico da temporalização. Eu acho tudo muito superficial se você quer saber. E eu me incluo nessa superficialidade. Eu não sou nem um pouco diferente.
MT – Sob muitos protestos, você se inclui.
GT – Não, eu me incluo. Eu me incluo porque tem uma frase que numa dessas peças eu botei: “Falta cultura a essa falta de cultura”. E falta mesmo, cada vez mais. Eu gostaria de estar trabalhando numa época em que havia cultura na falta de cultura. Porque falta de cultura sempre há em todas as épocas. Enquanto houver classe média, existe falta de cultura. Eu não quero conversar com as elites. A elite também tem falta de cultura. Tem uma elite cultural, claro. Mas eu também não quero falar com a academia, porque aí a coisa fica tão cerebral que só sai meleca de tão cerebral que é. Você conversa com os lenços onde todo mundo assoou seu cérebro. Aí fica chato. Está cada vez mais chato conversar com a falta de cultura, porque é tudo tão imediatista, tudo tão imediato.
MT – Tudo esperando embalagem, né? Tudo esperando para virar produto.

GT – Mais ou menos isso. Eu fui dar uma palestra no conservatório de música de Michigan. Claro que sabiam quem era Phillip Glass, com quem eu trabalhei. Mas não sabiam quem era John Cage! Porra, o homem que dividiu a música americana. Quando eu dava aula, logo depois do 11 de Setembro, aqui na NYU – Universidade de Nova Iorque – para pós graduados em Drama, em teatro que não sabiam quem era Julian Beck, do Living Theatre, daqui de NY. De 150 alunos, 3 levantaram o braço. E também não sabiam quem era Artaud e quando eu dei aula da CAL, no Rio de Janeiro em 2006, não sabiam que era Jean Genet. Ninguém sabe mais nada, entendeu? Antigamente pelo menos… Bom, chega com esse negócio de antigamente, porque a gente romantiza o passado. Enfim, foi um prazer!
MT – Foi um enorme prazer! Muito obrigada pela disponibilidade.
GT – “Deus ateu” é fantástico, é maravilhoso. Já em si, diz a que veio.
MT – A ideia é não ter essa pressa de ser qualquer coisa.
GT – Maravilhoso. Em Jerusalém, na porta do Santo Sepulcro, tem várias filas e quem toma conta ali são os armênios ortodoxos, com aquele cetro, aquele manto, aquele chapéu enorme. Aquelas filas enormes e enquanto isso você vê passando os Hare Krishna de laranja, os crentes, os católicos, os judeus ortodoxos. E tem as filas passando, de todas as religiões e um cara, um diretor de trânsito guiando todo mundo para que não se encontrem. É a porta de todo mundo entrando e saindo ali para ver onde Jesus foi morrer. É um asterisco no mundo aquilo ali. É fantástico. Visto de cima, você vê um asterisco, literalmente. E o armênio no meio do asterisco, ali em pé, sisudo! Esse homem tem direito de ser tudo, menos sisudo. Ele tá vendo o maior circo do mundo, com todas as fantasias e está lá, sisudíssimo. Eu não sei porquê tão sisudo assim. Mas é isso, ele é um deus que só pode ser ateu. Ele é um deus, porque ele tá regendo quem vai ver o túmulo do filho de Deus.
MT – Ele vê tudo da contraluz ali, do contraste.
GT – (risos) Então, é isso! Exato. Qualquer coisa, estamos aí!
Daniela Coutinho @dani_elacoutinho
Dramaturga e roteirista neófita, aos 38 anos trocou a carreira na publicidade pelo estudo das questões femininas no teatro e cinema. Pós-graduada em Dramaturgia para Palcos e Telas na Escola de Artes Celia Helena. Atua também como Assistente de Direção.
Marcio Tito • @marciotitop é autor teatral, entrevistador e crítico no site Deus Ateu
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I was born an artist because my body told me so.

I was shaped as an artist. In the format of an artist I. I was molded into an artist by my physical shape. Yes, by all my possible physical defects. An artist becomes an artist because he is little by little excluded by his peers as a child. One leg shorter than the other and therefore standing too long becomes a problem. Playing sports becomes a problem. And those eyeglasses. And that hair. And there’s the discomfort of the local language. And the local traditions. Everything I am not. That is, everything THE ARTIST IS NOT. And that is precisely what makes an artist, THE artist. All that he is not. All he is not and MUST BE. So this need for existence becomes a mixture of love of beauty and hatred of violence. Or vice versa. And the fear of everything. Yes, that huge fear of EVERYTHING. I realized that DEATH existed very early on. Not because the people around me died. No. But because I could see THE END. I saw the the uselessness of it all, all the extreme effort, all the ups and downs, all the wars, all those things so fragile, so temporary, so futile, so false in a way; those walls, no matter how thick the locks, no matter the combination… a bomb, a fire, a hurricane, a tsunami and everything it would all be gone. AND MY SOUL? AND THE AFTER LIFE? Who was I in the past? I asked these questions at an early age. Too early. Seven. Not even seven. I took refuge in words and wardrobes, shapes and pencils and paper and I dreamed of one day… one day… and suddenly I read Kafka.
Tenho a forma de um artista. E por forma, digo…nasci moldado. Quero dizer, fisicamente moldado. Moldado em forma e com todos os defeitos físicos possíveis. Um artista se torna um artista porque ele é pouco a pouco excluído por seus colegas quando criança. Uma perna é mais curta que a outra e, portanto, ficar muito tempo em pé se torna um problema, praticar esportes se torna um problema. E tem os óculos. E tem os cabelos. E tem o desconforto do idioma local. E tem os costumes e tudo aquilo que é, eu não sou. Ou seja, eu não sou. O artista não é. E isso torna um artista, o artista. Ele não é. E PRECISA SER. Então essa necessidade pela existência passa a ser uma mistura de amor pela beleza e o ódio à violência. Ou o contrário. E o medo de tudo. Sim, aquele medo enorme de tudo. Percebi que havia a morte muito cedo. Não porque as pessoas ao meu redor morreram. Não. Mas porque eu vi O FIM. Eu vi o final e vi a inutilidade de tudo, todo o esforço extremo, todos os altos e baixos, todas as guerras, todas essas coisas tão frágeis, tão temporárias, tão frágeis, tão falsas de uma maneira que paredes, por mais grossas que fossem, fechaduras, não importa a combinação, bastava uma bomba, um incêndio, um furacão, um tsunami e tudo desaparecia. E ALMA? E O DEPOIS? Quem FUI EU no passado? Eu fiz essas perguntas em uma idade precoce. Muito cedo. Sete. Nem sete. Refugiei-me em palavras e guarda-roupas, formas e lápis e papel e sonhei com um dia….um dia… e de repente li Kafka.

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“Os Cantos” by Ezra Pound prefacio Gerald Thomas

Ezra Pound
Prefácio: Gerald Thomas
Cantar um poema já é uma coisa sublime, difícil, quase impossível. Agora, escrevê-lo sem cantá-lo, mas chamá-lo de Cantos, como se escrevê-lo cantado, assim como um compositor surdo, Beethoven, tendo que imaginar sua sinfonia inteira naquelas cinco linhas de uma partitura… ah, isso é trabalho de um Hércules! Ou de um Ulisses ou qualquer outra odisséia qualquer galaxiana, física, metafísica, já que não se pode “quedar” (uso o espanhol porque o português não me parece apropriado: ficar, parar, cair…) nas meias verdades ou nas meias palavras ou meias intenções de um trabalho tão completo, mas tão completo que ele se torna VITAL.
Vital e, no entanto, pode-se viver sem ele. De acordo com minhas conversas com Haroldo de Campos sobre Ezra Pound, o que predominava sempre (na minha memória) era um berro. Não, não me entendam mal: ninguém berrava! Haroldo ria de alegria, eu ria do Haroldo rindo e todos em volta gargalhavam dessa inusitada “cantata” de risos e alegria, algo como uma alegoria, uma alegoria Poundiana, pounding in everyone’s heads, ou seja, martelando na cabeça de todos, assim como Hamm martelava a cabeça de Clov em Fim de jogo de Beckett, ou seja, assim como um canastrão (Hamm actor) martelava o seu próprio cravo (clove) de Natal nele mesmo antes de ir pros fornos; essa parecia ser a personalidade, bipolar, ciclopar desse nosso autor controversial no peso e na medida do quilo inteiro: two pounds.
Ezra Pound eram dois: Aquele que defendia Mussolini e aquele que defendia uma América para a qual nunca mais queria retornar. Mas qual era o Mussolini que defendia? Me pergunto se, como diretor cênico de ópera e judeu, não devo dirigir Richard Wagner por causa da sua conhecida postura e seus escritos (Judeus na música etc) ou mesmo Heidegger e sua filiação ao Partido Nazista: o que fazer desse brilhante pensador? Ou do maestro Herbert Von Karajan? Queimar todos os seus CDs porque também filiou-se aos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial?
O III Reich foi de fato um fato! Um fato tão histriônico que autores hamms como Ezra Pound não poderiam não se deixar afetar por ele. Caminhos tortos talvez, autocensura depois, autocrítica mais tarde porém… durante… enquanto o pano de boca está aberto… a Boca berra histrionismos que o momento não enxerga e o ouvido não ouve, de novo, como um Beethoven surdo tentando imaginar sua 7a Sinfonia naquelas cinco linhas de uma partitura. Os cinco anos de uma guerra e os cinco conflitos interiores de um autor e os Cantos com suas inúmeras inversões do número cinco encantados, com suas navegações embarcadas em alto mar, embriagadas, nauseadas pela ausência de chão, de horizonte, pela ausência de “pra onde ir, de onde viemos e pra onde vamos?”. “TUDO é UMA BLASFÊMIA, uma mentira!” Sem dúvida uma afirmação que não se pode retrucar em nenhum tribunal, e nem Garrincha poderia driblar.
Pound imaginava o inimaginável: como naquele famoso continho de Beckett “Imagination Dead, Imagine”, ele chegou a imaginar um Brasil utópico pro qual queria imigrar (escreveu pros irmãos Campos a respeito), mas um eterno exilado, como um Nowhere Man que se preze, não finca pé em lugar algum. Mas RECLAMA, clama e canta em voz alta sem cantar. Rouco (assim Hemingway o descrevia), louco (assim todos o descreviam), acho que a “Sociedade Internacional dos Lençóis” o processaria pela quantidade de vômito derramado (ou, pelo menos, Arthur Bispo do Rosário, se o tivesse conhecido, quando ainda na Marinha Mercante do Brasil, teria lhe aplicado um bom tapa na cara, fanático por destruir lençóis que era, fio por fio, pra poder, depois, lindamente, brilhantemente, construir suas bandeiras: ambos têm a ver com o mar e no entanto Bispo cantava de verdade!
Pound escreveu e descreveu seus “Cantos” vitalícios e foi tão maltratado quanto Bispo do Rosário, só que não o encarceraram. Bispo se dizia Jesus, Pound se dizia pagão ou ateu, ou anarquista. Mas será que os dois eram o que eram? Acreditavam mesmo no que diziam? Acho tudo encenável. Creio que tudo é encenável, principalmente o “tom” dos Cantos, portanto difícil crer em quem escreve nesse tom. Ezra se dizia tudo isso, ou nada disso: mas ler os Cantos leva a ter um “feeling” subliminar e é de levantar a pele, ou os cabelos, assim como ouvir a ária final de Tristan und Isolde de Wagner, o Liebestod, e não notar a transparência da morte dentro do amor ou do amor dentro da morte; digo isso porque é transparente que Pound queria ser um agnóstico (e provavelmente o era), mas em Os Cantos era também um crente profundo. Crente numa entidade ainda sem título talvez. Pressupô-la como um deus ou uma deusa ou uma musa ou qualquer coisa maior que o ser que ele próprio era, ou ezra, está implícito em seus escritPtos assim como a cegueira de Tiresias, que nenhuma cegueira tem (a contradição ou a brincadeira de inVERSOS está justamente aí, nessas parábolas). Aquele em que nada crê é justamente o iluminado; o aleijado é justamente aquele que escalara um prédio pra salvar a velha das chamas e assim por diante: Aí está a virada filosófica, aquela que somente Kafka, além de Pound, conseguiu transcender “de verdade” na literatura do século XX. Fez o homem virar inseto. E nem por isso virou inseto. Virou mais homem do que nunca: mas Metamorfoses e ironias tão contemporâneas e tão globalizadas, já na década de 30 do século passado: leiam essa passagem:
Escolas, igrejas, hospitais para o trabalhador Montes de areia para as crianças.
Defronte ao Palácio dos Scheneiders
Ergueu-se o monumento a Herr Henri Chantiers de la Gironde, Banco do Paris Union O banco franco-japonês
François de Wendel, Robert Protot Aos amigos e inimigos de amanhã
“o sindicato mais poderoso é sem dúvida aquele do Comité des Forges”,
“E que Deus nos leve” disse Hawkwood 15 milhões: journal des Débats
30 milhões pagos ao Le Temps
Onze para o Echo de Paris
(…)
Os que armam 50 divisões, sustentam o exército japonês e estão destinados a ter um grande futuro
Ezra Pound, um Clauzewitz? Um Virilo? Um globalizador caricaturista à la Mario de Andrade? Perdão… Oswald de Andrade? De novo a nau. De novo a Vela, o Rei da Vela, aquela que o vento sopra e que a boca sopra, aquela que se acende numa igreja ou que se iça num barco… nas margens do Reno.
Quem foi o primeiro poeta concreto da História? Mallarmé? Malevich com seu quadro negro colocado em cima da porta? Joseph Albers com seu Branco sobre o Branco? Marcel Duchamp com sua Roda de Bicicleta? Os Irmãos Campos? Ezra Pound? Gertrude Stein no The Making of Americans? Ou terá sido John Cage em sua partitura Silence?
Um deriva do outro. Pouco importa. Pound era um escritor, um poeta, um artista com um peso e VÁRIAS medidas: um predador e, ao mesmo tempo, um perseguido, um foragido. Fugia do quê? Só ele sabia. Um monstro de homem. Me sinto ridículo por ter que compará-lo a um Dante ou um Milton do século XX. Prefiro reconhecê-lo como um Noé, aquele que construiu a arca antes do dilúvio e colocou sua nau, generosamente, a disposição da sobrevivência da espécie animal. Mas Pound não foi Noé. Sua arca é mais concreta, porém impalpável, só conseguimos enxergar seus Cantos através das palavras e da rima, e da FÚRIA e da tempestade (não, não é o Sturm und Drank do século passado, pois Pound era um INDIVÍDUO e não um movimento), e mesmo essa tempestade parece não ter um fim, nunca, nunca.
Mas, como todo gênio, ele tinha a certeza concreta de que a raça humana teria que passar por um dilúvio e começar do zero. Seus Cantos são o berro primal de que tudo aquilo criado pelo homem é torto, sem nexo, pretensioso, já que Aristóteles decretou uma ordem, um início, um meio e um fim que nada valem quando confrontados com a poesia de Yeats ou um país imaginário onde quis passar seus últimos momentos de vida, o Brasil, um lugar moderno, concreto, concretista, totalmente enCANTADO pela obra dele, um lugar chamado imaginário, sobrevivente do dilúvio, aberto pr’aquilo que é novo, mesmo que predador e sofredor, cego e visionário, o refúgio definitivo das contradições do modernismo, FrutoFilho de Pound. Um lugar dos dilúvios constantes onde os Monstros são esquecidos ou onde seus berros se perdem na natureza: esse estranho país chamado nunca, onde tempestades duram pouco e a literatura nunca e o teatro pouco e a música abunda e a natureza tanta e tonta e canta e como! Como numa galáxia, aquela de Haroldo que começou aqui, nos Cantos ou em Ovídio ou em Homero ou chega!
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