Monthly Archives: May 2005

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OBRIGADO, ARNALDO JABOR PELA SUA LINDÍSSIMA CRÍTICA/ODE na CBN sobre o nosso "Circo de Rins e Fígados". Fiquei (ficamos) comovido(s). Não sei como te agradecer. Que belíssimo reencontro, esse nosso!

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Marcelo Rubens Paiva

O Estado de S. Paulo
Sábado, 7 de Maio de 2005

Começo, meio e fim

Marcelo Rubens Paiva

Há uns tempos, criticavam uma obra de arte que tivesse começo, meio e fim, "detalhes" que indicavam acomodação e incapacidade de inovação. Podia até ter começo, mas meio e fim, era o fim! A regra: não facilitar para o público. Se quisessem algo mastigado, nem azedo nem amargo, que comessem pizza em frente à TV, gênero inferior e vendido por natureza, dizia-se. O lance era complicar, para indicar o ilogismo da vida e da morte, o lance era confundir, para baixarmos a guarda da audiência, penetrar com um jab nos lapsos, conquistá-la por desvios ao dissecar o núcleo dos mitos e arquétipos; imagens do inconsciente coletivo. Um escritor tinha de fazer o curso de mitologia do Juanito Brandão e ter em mãos o dicionário de símbolos de Juan-Eduardo Cirlot. A arte buscava os personagens de sua origem, mas se afastava de seu formato e se inspirava no caos. O teatro virou artes plásticas. A dança virou teatro. A poesia virou slogan. A língua foi embaralhada. Quando bem-feito, tudo era lindo, como um trecho de Stravinski, Guimarães Rosa, Artaud. Mas, quando malfeito…

Ir ao teatro? O maior símbolo da decadência podia ser comprado pelo correio, a camiseta do grupo Casseta & Planeta, zoando: "Vá ao teatro, mas não me convide." A essência dos grandes gêneros, contar uma história e falar de personagens, perdeu-se na analogia das imagens, que não tem começo, meio e fim. Anunciou-se nos quatro cantos, o teatro está morto! Esteve.

Coincidência ou não, as regiões que cercavam teatros tradicionais também se degeneraram. Algumas viraram cracolândia. Uma das saídas, construírem teatros em templos bem-sucedidos de uma outra atividade, o laser, as compras: o shopping! No Rio, funcionou. Em São Paulo, o Serviço Social do Comércio e o da Indústria intervieram. O Sesi tomou a Paulista, o Sesc plantou sua semente no Anchieta (Centro de Pesquisa Teatral), nas unidades Pompéia, Ipiranga, Vila Mariana, Belenzinho e, agora, Pinheiros. O teatro vive uma renascença, nunca esteve tão em foco, nunca esteve tão bom.

O diretor ícone dessa metamorfose é Gerald Thomas. Foi uma das vítimas ou agentes da morte do público. Suas primeiras peças, Eletra Com Creta, Carmem com Filtro, fizeram uma revolução no teatro brasileiro, para o bem e para o mal. Era o teatro de encenador. Ou do encenador de si mesmo. Espere. Todo artista é, no fundo, encenador de si mesmo. Era o teatro cuja mão do diretor batia mais forte do que a de atores e, sobretudo, autores. Apoiado em Beckett, era um teatro que desconstruía uma acorrentada dramaturgia aristotélica. Paradoxo. Em Beckett, a dramaturgia é a força, e os diálogos, a sua razão.

Estranhou-se Gerald Thomas no começo. Alguns achavam armação de críticos novidadeiros, provincianismo de uma classe que se encolhe diante do que vem de fora. Não desisti de entendê-lo. Fui para trás da coxia, a um ensaio, ver Gerald pilhando Bete Coelho crua. Ela entrava, e o técnico errava a luz. Ela tinha de voltar. Gerald mandava ela entrar de outra maneira. Ela entrava mancando. O técnico errava de novo. "Volta! De novo!" Ela entrava com os braços pra cima. O cara errava. De novo. Não nos interessava mais a luz. Olhávamos em silêncio e emocionados as entradas de Bete. E, a cada uma, uma adrenalina, uma revelação. Poderíamos ali fazer uma peça: O Entrar de Bete. Teatro é livre, por que cercá-lo? O público não gosta daquilo? Que pena.

Em Graal, ele conseguiu fazer de um balé uma comédia, algo nunca visto. Em Ventriloquist, de 2000, peça marco em sua carreira no Brasil, suas auto-referências são mais evidentes, o humor, idem. Há até um ator nu no palco representando-o. Gerald passa a abordar a obsessão pela exposição e visibilidade do mundo Caras, o ridículo que há em nós mesmos na TV (Esperando Beckett), na moda (Nietzsche Versus Wagner) e, agora, no teatro, na fama, no vazio, no circo de nossas vaidades e intimidades, Um Circo de Rins e Fígados, que estreou sábado passado.

Gerald vive seu melhor momento. Por quê? Redescobriu a dramaturgia, tem humor, não leva a vanguarda a sério, o que dá tranqüilidade para escrever. E, olha: sua peça tem começo, meio, fim e, surpresa, um eixo. Diante do abismo, a única maneira de andar pra frente é se virando.

A peça fala, entre outras coisas, da militância que virou terrorismo, da morte da ética e do público, satiriza nossas pretensões de grandes artistas, na voz do maior ator brasileiro, Marco Nanini, uau!, que faz o ator Marco Nanini, flagrado num escândalo de necrofilia que não atrapalha a sua carreira (ao contrário). Nanini-personagem recebe pelo correio caixas e caixas com documentos secretos e órgãos humanos, enviadas pelo desconhecido João Paradeiro, de paradeiro desconhecido. Detetive Sylvia Colombo é responsável pelo caso. Um desabafo. Uma comédia instigante, mórbida. Um jogo. Denuncia-se. Venha, publicão. Um Circo de Rins e Fígados, no novo Sesc Pinheiros.

Curiosamente, enquanto o mote desse período era inovar o espaço cênico, tirar o teatro dos teatros, Gerald nunca fez uma peça fora deles, fortalecendo-os. Vida longa para ambos.

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do Zuenir Ventura

Ainda sábado – De noite, fomos ver a estréia de "Um circo de rins e fígados", de Gerald Thomas, que inaugurava o monumental (mais de mil lugares) teatro do Sesc Pinheiros. Uma porrada. É a peça mais política e virulenta do meu amigo. E a mais pessimista. A peça se salva do desencanto, do desalento e da descrença pelo humor e um amor selvagem ao teatro e ao país. Aliás, como o próprio Gerald, que tem dificuldade de dormir, é hipocondríaco e sente as dores desse mundo na carne. Ele só se cura quando se encharca de Brasil até a alma. É como a imagem daquele Nanini enrolado na bandeira brasileira no final da peça, ao som do Hino Nacional tocado num ritmo de samba mangueirense, regido por Ivo Meireles. Nanini está simplesmente soberbo. Nada do que Gerald quis mostrar e dizer existiria sem ele.

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Folha de Sao Paulo, sabado 7 de maio

TEATRO

Em "Um Circo de Rins e Fígados", dramaturgo retoma vigor da década passada e divide responsabilidade com atores

Nanini ilumina a angústia de Gerald Thomas

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

No fim da peça, em meio à fumaça recortada por focos de luz, o protagonista dá seu último adeus à platéia, que não sabe mais se ri ou chora. Sim: é Gerald Thomas de volta, com o vigor da década passada, como se via em "Carmen com Filtro 2" ou "The Flash and Crash Days".
Não se trata simplesmente, no entanto, de uma volta para trás. Importantes lições foram assimiladas: cada vez mais Thomas compartilha com os atores a responsabilidade pelo espetáculo, que agora se equilibra entre uma estética cênica meticulosa (Thomas, como de hábito, assina texto, direção, iluminação, trilha, cenografia e projeto gráfico, e tem no figurinista Antonio Guedes um parceiro à altura) e um texto que se apóia na performance, não raro no improviso, dos atores com a missão de desautorizar os Movimentos Obsessivos e Redundantes para Tanta Estética (ou seja, negar a M.O.R.T.E., título de sua última grande montagem de transição). E, para essa função, tem agora o privilégio de contar com Marco Nanini.
Assim, a montagem se impõe como uma explosiva fusão entre uma opressiva atmosfera expressionista e um humor negro libertador, que vem direto do surrealismo de Genet e Beckett. O impacto visual do cenário -grandes painéis saturando a cena de significados, para logo em seguida serem retirados e deixá-la desolada- relembram o público que o autor demiurgo é, na origem, um artista plástico.
O fato de esses painéis serem reproduções em grande escala de esboços para montagens antigas dá pistas sobre a própria trama da peça. Thomas, durante muito tempo, desenhava suas peças em vez de escrevê-las, até que um dia, saturado de si mesmo, experimentou em "Nowhere Man Unplugged" (o palco nu), simples suporte para seu ator Luiz Damasceno.
O mundo, no entanto, seguiu sendo um pesadelo, e as obsessões visuais voltaram a assombrá-lo. No fundo do poço, a saída foi arrumar um novo alter ego para poder se observar de fora. No começo da peça, portanto, Marco Nanini, depois de sonhos agitados, acorda e se vê transformado em Gerald Thomas, no seu limbo de criação, tendo apenas hipocondria e erudição como armas originais.
Isso é um trabalho para o super-Nanini. Pondo o público no bolso a cada cena, sem perder nunca o fio da meada da angústia com a falta de sentido do mundo, eis um raro exemplo de ator visceral e distanciado ao mesmo tempo, que comove pelo riso, que diverte com a desgraça mais mórbida. Cada cena é calibrada para ser esgarçada por ele, e frases em princípio pueris, como "Nada prova nada" e um melodramático "Maldito momento!", se tornam bordões a serem lembrados por muitos anos.
A alegria de Nanini ilumina as trevas da obsessão geraldiana, sem desautorizá-la. A própria voz em off do autor, marca registrada de suas peças, pode agora estar bem menos presente, em uma serenidade quase olímpica, ela que já foi tão resfolegante.
E a Musa-Bailarina, outra personagem fixa, aqui a cargo da múltipla Fabiana Guglielmetti, escapa do linchamento, mas não de David Lynch, em uma caricatura comoventemente pueril. Quanto ao coro persecutório, outrora tão esmagado de responsabilidade, agora visivelmente se diverte muito com as marcas criadas por Dani-hu com a verve de Jackie Chan e que Luiz Damasceno tornou orgânicas.
No fim da peça, em meio à fumaça recortada, depois de passar por obsessões passadas e enfrentar os mesmos simulacros e becos sem saída, o protagonista dá seu último adeus à platéia -mas já é tarde demais para morrer.
Ele agora encarna não só Gerald Thomas, mas todo o teatro brasileiro, dos jovens fomentados à sábia indignação de Walmor Chagas, que, em meio à precariedade e desrespeito, se recusa a ser vencido. Que soe o hino nacional, pelo samba de Ivo Meirelles: Gerald Thomas está vivo, e o teatro não morre tão cedo.


Um Circo de Rins e Fígados

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Entrevista com Gerald & Nanini na TV UOL

Para assinantes UOL

"Rins e Fígados"
"Mais que o melhor ator, Nanini é um parceiro", conta Gerald

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Folha de Sao Paulo, ILUSTRADA 5 de maio 05

CONTARDO CALLIGARIS

Um circo de rins, fígados e informações confidenciais

Estreou sábado, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, "Um Circo de Rins e Fígados", peça que Gerald Thomas escreveu especialmente para Marco Nanini (em cartaz até o fim de junho).
Na abertura da peça, Nanini recebe um monte de caixas que contêm documentos secretos e pedaços de corpo (rins, fígados e -aprendemos mais tarde- destroços de sua musa inspiradora). Tudo isso foi enviado por João Paradeiro, que planeja instalar uma maqueta de Brasília no meio da sala de Nanini. Com isso, talvez seja possível os caminhos pelos quais o governo nacional sempre dá errado.
Gerald Thomas foi muito próximo de Samuel Beckett, que numerosas histórias literárias insistem em definir como o mestre do teatro do absurdo. Nunca entendi o porquê desse apelido. Tome "Esperando Godot", a peça mais conhecida de Beckett: qualquer um que tenha freqüentado uma roda de padaria sabe que a peça (seus diálogos e sua história de espera não se sabe de quê) é absolutamente realista.
O mesmo vale para o "Circo", de Gerald Thomas. À primeira vista, talvez você ache fantasioso ou estranho o começo que acabo de descrever. Mas eu me senti imediatamente em casa, pois recebo, a cada dia, exatamente os mesmos pacotes que chegam à casa de Nanini.
Pedaços de corpo? Escrevo no domingo; acordei tranqüilo, abri a porta com o café na mão e eis que a Folha me entregou os corpos torturados dos guerrilheiros do Araguaia, 1.500 esqueletos de iraquianos exterminados por Sadam Hussein e nove turistas feridos ou mutilados no Egito. Sábado, para variar, eu tinha recebido o e-mail de uma amiga antropóloga que participa de uma investigação internacional sobre comércio de órgãos para transplante. Quer mais?
Quanto aos documentos, Nanini tem sorte. João Paradeiro lhe manda apenas as provas do envolvimento americano no golpe de 64. Eu costumo receber, ao mesmo tempo, documentos segundo os quais as provas desse envolvimento foram divulgadas e fabricadas não por João Paradeiro, mas pela KGB, o que, obviamente, confunde meus pensamentos.
Tudo bem, você dirá, mas e os destroços da musa? Por que o corpo da musa que nos inspira (na peça, a maravilhosa Fabiana Guglielmetti) chegaria aos pedaços pelo correio? Georges Bataille (citado na peça) nos lembraria que o erotismo e o horror são companheiros. Mas podemos ser mais específicos. Na modernidade, o poder não é mais um atributo de nascença; não é preciso ser marquês para tornar-se presidente. Com isso, a distribuição do poder pára de ser um dado da natureza e se torna um vasto campo de fantasias. Passamos a sonhar com o poder como sonhamos com conquistas amorosas, e os sonhos se confundem: o poder se torna erótico e o erotismo é invadido por devaneios de domínio e de crueldades sofridas ou infligidas. As fantasias sexuais do protagonista da peça (não as explicitarei para preservar o suspense) são a expressão lógica de nossa confusão de poder com sexo.
Acréscimo de segunda-feira: alguém me diz, com espanto e vergonha, que as descrições de tortura do jornal de domingo produziram nele uma estranha excitação. Pois é, o amor é aos pedaços.
Quanto à maqueta de Brasília para entender o que deu errado, todos recebemos propostas análogas a cada dia. E a maqueta cresce quando descobrimos que as coisas começaram a dar errado muito antes de Brasília…
Em suma, desde o início, a peça de Gerald Thomas é realista demais. Dica para as histórias literárias: Gerald Thomas é um dramaturgo do teatro da lucidez.
Agora, esse retrato do desamparo moderno poderia ser triunfalista, no estilo "somos os últimos arautos de um mundo melhor", ou lamuriante, no estilo "somos os últimos representantes de uma espécie extinta".
Ora, Gerald Thomas escolhe nos fazer rir. É possível que a alegria e o riso sejam jeitos de transformar o mundo tão eficazes quanto a indignação e, às vezes, menos hipócritas do que ela. Exemplo: "Se fosse hoje, eu pegaria em armas e seguiria o Che pelas cordilheiras alpinas atrás de Emmentaler, Gruyère, Appenzeller ou qualquer outro queijo suíço".
O cômico está no texto e, obviamente, na arte de um ator portentoso. Mas a função de Nanini na peça não é só a de dar prova de seu imenso talento. Gerald Thomas escreveu para um protagonista que é um ator porque o homem moderno é um ator. A vulnerabilidade narcisista do ator é a nossa. Além de recebermos a cada dia pacotes de João Paradeiro, somos todos atores. Como diz o texto, nossa "existência inteira é validada, ou não, através do aplauso ou do amor de uma platéia", sempre.
No final da peça, é tocado um arranjo de samba do hino nacional (feito por Ivo Meirelles) e Nanini veste a bandeira. O texto da peça diz que o Brasil é um problema sem solução, mas que é (console-se) um problema maravilhoso. O momento é comovedor porque o Brasil se torna assim o símbolo de uma época feita de problemas sem solução. Talvez essa seja a única razão tolerável e legítima para qualquer patriotismo.
Acréscimo de terça-feira: a peça cresce na lembrança, e ainda agora me surpreendo rindo sozinho, pensando em Nanini e no "nosso" circo.


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