Gerald com humor
Autor e diretor se revigora em 'Um circo de rins e fígados'
Macksen Luiz
No circo montado por Gerald Thomas para aquela que talvez seja a sua encenação com maior humor, o diretor faz uma virada em suas obsessões cênicas sem abandonar nenhuma delas. Neste tráfico de corpos dilacerados, de sexualidade necrófila, de mortes coletivas, de dependências químicas, de mídias vorazes, de ego complacente, de desconstruções de significados, de referências repetitivas e de perplexidade diante de um sentimento de finitude, Gerald Thomas provoca o riso, de si mesmo e da ausência de sentido de um mundo explodido. O teatro é a lona de tecido cênico, bem mais leve e quase seqüencial, que abriga esse manifesto, que reproduz um estado agônico e desiludido da biografia do predistigidador de uma estética em crise, que retira de caixas múltiplas, como torres desabadas, as tantas mortes, desespero e injustiças que fundamentam a contemporaneidade.
Um circo de rins e fígados revigora Gerald Thomas por introduzir, em meio a uma acentuada visão desolada desses tempos impossíveis de se entender, componentes de humor que quebram com a rigidez de estrutura cênica, em que os significados (meios de compreensão) e as referências (exposição de conhecimento) são submetidos a um banho de comédia performática e de improviso descomplicado, que reforçam com clareza, e por contraste, o quadro opressivo de um picadeiro de horrores. Destes contrapontos aparentemente contraditórios surge uma edição cênica do manifesto que aponta para o que atinge de maneira tão visceral o autor: ao mesmo tempo, ressensibiliza os códigos do diretor através de um intérprete que os absorve e os subverte, filtrados pela personalidade de ator que incorpora a máquina do diretor, impondo-lhe abertura para maior comunicabilidade e novas possibilidades expressivas.
A visualidade de Gerald Tomas, com a cena enevoada e os painéis com seus desenhos, é também reforçada pelo contraste de ser vista através de suas entranhas. A ameaça de sufocar os espectadores com mais fumaça, brincadeira em resposta a uma das características visuais de Gerald Thomas, ameniza a atmosfera retalhada de pedaços de corpos e insufla beleza em outras cenas, nas quais a desertificação do preto e do cinza se colore com o traço gráfico dos guaches. Na cenografia, Gerald Thomas busca outro enquadramento, explorando, com a entrada e saída dos painéis e com a força da poderosa iluminação, projetar um mundo desolado, que desarma a escala do dramático.
A trilha sonora sustenta os quadros com escolhas perfeitas, revelando-se extraordinária na cena final, em que o Hino Nacional é tocado apenas na percussão, com sonoridade surda e efeito perturbador.
Os figurinos de Antonio Guedes são grotescamente exagerados para o personagem Marcos Nanini, evocativos para a bailarina e realisticamente referenciados para o coro policialesco.
Fabiana Guglielmetti, como a musa que paira em meio a delírios e angústias do homem que vive o pesadelo da atualidade, brinca com certo tipo de interpretação impostada e desenha em movimentos dançados a arte em declínio. O elenco de apoio – Amadeo Lamounier, Pedro Osório, Gustavo Wabner, Gilson Matto Grosso, Beto Galdino, William Ramanauskas, Rodrigo Sanches e Narciso Tosti – forma grupo integrado, virulentamente invasor, mas que mantém também tom cômico, com referências à sua condição de extras e outras citações às suas características coletivas.
Marco Nanini, que interpreta personagem com seu próprio nome, é um delirante alter-ego do diretor, que por sua vez se deixa devorar pela atuação irônica, quase debochada e brilhante de Nanini. Toda a carga do autor-diretor é triturada pela ousadia do ator, mas ao mesmo tempo integralmente mantida por ele, que entra e sai deste colcha de erudição, perplexidade, medo e vazio com absoluta consciência de que está dentro de um jogo, no qual ultrapassa as regras para torná-las mais vivas.
Nanini impõe algum distanciamento, ainda que não se desvie daquilo que é exposto, apenas acrescentando-lhe ''espontaneidade'' e toques pessoais que desvendam qualquer hermetismo. O ator abala os significados, desconstrói as citações, se diverte com as referências, sem, no entanto, desqualificá-las com atuação artificialmente crítica. As repetições de frases e o pedido de participação da platéia lembram a experiência de Nanini com o teatro mais popular com o qual mambembou no início da carreira. E na apotética e glauberiana cena final, em que surge como figura entre uma imagem positivista republicana e um parangolé tropicalista, se materializam o sincero desabafo de Gerald Thomas e a exuberância refinada de Nanini, com uma nacionalidade desabando ao fundo.
Um circo de rins e fígados – Teatro Villa-Lobos, Av. Princesa Isabel, 440, Copacabana (2275-6695). 6ª e sáb., às 21h, e dom., às 19h. R$ 30 (6ª) e R$ 40 (sáb. e dom.).