Por que montar Beckett ? Bem, a resposta poderia simplesmente negar a pergunta em si. Mas, sim, vale a pena respondê-la, acho. Vamos por partes então.
Se olhamos a obra de Samuel Beckett como se fosse uma estrutura sólida, uma dramaturgia aristotélica, damos com os burros n’água. Por outro lado, se focarmos a peça (especialmente) Happy Days, podemos perceber que tudo é altamente simbólico. Sim, Beckett transforma um vagabundo em filósofo e, ao mesmo tempo, transforma uma idéia de Verlaine (Oh, lês beaux jours) numa clínica de lunáticos que discursam e discursam e portanto descartam Descartes. Justamente. “Se penso que existo, não devo existir. Mas se existo realmente, posso desistir de existir”. Lógico, não? Mas e o humor? E por que rimos dos jogos de palavras? Porque eles fazem nossa pele tremer com a veracidade de que a linguagem – e somente a linguagem – é o nosso único fio condutor para justificar nossa existência aqui nesse “tempoespaço”.
Então, o que resta?
Restam nossos “disjectos”, nossos objetos, nossas “coisinhas” (que Winnie retira da bolsa enquanto pondera). Sim, nossos restos resumidos em pequenas coisinhas que acumulamos e que ficam quando nós partimos ou morremos.
Assim como em Fim de Jogo, onde o cego e paralítico Hamm (que ouve a voz da humanidade toda, como o som negro do universo), depende (como se fosse uma dependência bíblica e química) de Clov: aquele que anda e fica de pé o tempo todo, não senta nunca e somente enxerga tons de cinza e tem um enorme medo dessa mesma humanidade que Hamm “ouve”.
Foneticamente, Hamm soa como presunto ou como canastrão. Foneticamente, Clov soa como cravo encravado nas costas de um presunto pronto para ir para o forno na época de Natal. Sim, forno. É aí que eu queria chegar.
Não existe (nem em Happy Days ou em Fim de Jogo) uma intenção de jogar a criatura humana dentro do seu erro mais brutal: o de questionar suas existências. Ao contrário, as criaturas estão todas lá. O que falta é sempre algo que viria de fora, um Godot que não aparece nunca, um vento que promete, mas nem brisa vem, um cão amigo que nunca chega para guiar seu dono cego.
Os personagens são vítimas, assim como nós, na plateia, somos vítimas do destino ou de “algo maior” que nos rege. Samuel Beckett é um autor mágico que usou 80 mil referências e, no entanto, aboliu, deletou, apagou as preposições que as uniriam. Então somos vítimas de referências que precisam de referências, e isso torna tudo um enorme exercício de metalinguagem.
Na maior parte do tempo, ela se transforma em algo que não conseguimos e não devemos explicar. É mais ou menos como a dor de cabeça. “Mas eu não sou provedor de aspirina”, diria Beckett. Metáfora não se cura com aspirinas.
Beckett, antes de mais nada, é para ser lido com simplicidade. Não que a obra seja “simplista”. Óbvio que não é isso. Mas há um exagero de acadêmicos e de alguns diretores que defendem suas teses ou encenam suas peças. Eles pecam por lerem simbolismo grandioso demais, significados propositadamente escondidos em demasia. Não. No Symbols where none intended. (1)
Mas é obvio que o intelectual irá ler o simples nome de um personagem ou pesquisar uma certa região na França citada e chegar às suas próprias conclusões sobre Vocluse ou outras regiões produtoras de vinho, quando, na verdade, o autor somente fez um jogo fonético que lhe parecia apropriado naquele momento.
Por que montar Beckett então?
Porque ele reflete nossa lúcida instabilidade e vulnerabilidade como nenhum outro autor.
A obra de Beckett é, antes de mais nada, lúcida, superlúcida e nem um pouco absurda.
Ela nos revela nossas eternas repetições e rodas e redemoinhos do pensamento que vêm a ser nossas vidas. Beckett expõe, como se fossem feridas abertas, o quão ridículo, estranho e engraçadíssimo todo esse tormento pode ser.
E temos que rir.
All moans and groans from the cradle to the grave. (2 )
Beckett foi esfaqueado por um árabe em Paris em 1938 e – no julgamento – o quase assassino não tinha respostas: “Não sei. Não sei porque fiz isso”, dizia o réu em detrimento da própria causa.
Eu diria que todos os personagens de Beckett depõem contra si mesmos. Até mesmo Winnie, quando quase completamente soterrada num mar de lamúrias estranhissimamente engraçadas e – literalmente – a ponto de não conseguir mais respirar.
Se Not I nos mostra uma boca que fala e fala e fala e engasga somente quando se percebe parte de um organismo maior,
(Un)Happy Days mostra o que todas as peças de Beckett nos mostram: um ser em frangalhos BUSCANDO A ESPERANÇA.
Afinal, não é isso? A possível vinda de Godot não seria a solução para o dilema de Didi e Estragon? Os pais de Hamm (Nagg e Nell, ambos morando dentro de latas de lixo) não são a própria miséria buscando esperança?
Winnie soterrada até o pescoço, em Happy Days, não é diferente. Para não ter o derradeiro ataque de nervos que a derrube (assim como derrubou Willie, seu marido), ela olha o mundo assim como todo miserável olha o mundo.
Através de uma fresta meio aberta da veneziana, vemos Beckett em Rockaby (Cadeira de Balanço) buscando alguma coisa numa vida que já se foi: “FUCK LIFE”, dizia Billy Whitelaw. One blind up, fuck life, (3) assim como nas histórias curtas Enough ou em Imagination Dead Imagine (“Um lugar, aquele de novo, aquele não, não aquele de novo e agora então? O quê? Alguém dentro do espaço? Não, isso de novo não.”)
Beckett sugere uma vida torturada. Nada intelectual ou absurda como Martin Esslin e outros imbecis o tentam categorizar, Sam fala das coisas mais simples e sempre quase no fim do caminho.
Eu disse quase no fim do caminho:
“I’m unhappy. But not unhappy enough” (Theater 1). ( 4 )
E arranca gargalhadas do público. Mas quem mais ri dessas máximas são públicos de países que passaram por ditaduras e altíssimas repressões ou o (chamado) povão, cuja vida é árdua, árida e imensamente com imaginação. Ou então, em países do Primeiro Mundo, quem ri mais alto de I can’t go on. I’ll go on (5) são os espectadores menos privilegiados, aqueles que lutaram em guerras ou que voltaram delas e não se encaixam mais no sistema.
As cenas entre Pozzo e Lucky não poderiam ser mais ilustrativas nesse sentido. Não somos somente castigados a levar as cestas básicas que o Senhor nos deu. Hegelianamente, somos também castigados e chibatados por sermos seres pensantes, mesmo que esse pensamento venha em desordem ou desarmonia social.
Tom Bishop era um austríaco que dava aulas de Francês aqui em NY na New York University e na Alliance Francaise. Era um dos melhores amigos de Beckett e tinha um poodle com o nome do autor.
Num café, o poodle não se sentia confortável (aliás, o poodle estava super certo: nenhum cão deveria ser amarrado na cadeira enquanto os donos conversam.) E o poodle começou a latir. E latir alto !
“SHUT UP Beckett”, berrava de volta o Sr. Bishop certo dia em Paris, sentado na frente do nosso querido autor em pleno café na Place D’Italie, que ouviu (atônito) a ordem de Bishop. E ambos, cão e autor, se calaram. Mas não por muito tempo.
Beckett gostava de anedotas. Suas peças e sua prosa nada mais são do que anedotas em vários atos e vários quartos e espaços vazios que nunca serão preenchidos porque somos, como raça humana, fadados a “falhar. Falhar de novo. Falhar melhor”. Somos nossa pior companhia. Não aguentamos a solidão. “Você está deitado de costas no escuro e a sua própria voz é a sua única companhia”. Beckett pode ser visto como um autor cruel, engraçado, existencialmente saturado e dantescamente macabro. Mas o fato é que, se perguntarmos “por que montar suas peças”, a resposta é mais que evidente: ele é a própria representação do nosso espelho quebrado, despedaçado num canto escuro qualquer dessa nossa vida estranha com seus murmúrios e grunhidos, do berço até o tumulo.
Gerald Thomas
Nova York, 10 de setembro 2010