VAGUINALDO MARINHEIRO
DE LONDRES
As nuvens negras sobre a cabeça de Gerald Thomas se dissiparam. Em setembro de 2009, o diretor dava adeus ao teatro com um texto em que dizia estar desiludido, petrificado, perdido, sem noção das coisas.
Agora está com fome de trabalhar: ensaia uma peça para estrear em Londres até o começo de novembro e discute com John Paul Jones, baixista do Led Zeppelin, uma ópera que farão juntos.
Em seu manifesto de despedida dos palcos, Gerald afirmava que estava na hora de parar porque as artes se transformaram numa “mera repetição medíocre e menor de algo que já teve um gosto bom e novo”.
E isso mudou?, pergunta o repórter ao diretor, após ele concluir em Londres um workshop com atores que tentavam entrar em sua nova Companhia de Ópera Seca, recriada na capital britânica.
“Não, nada mudou. Mas o que eu posso fazer? Virar um pintor de paredes ou vender salsichas em Nova Jersey?”, responde bem-humorado.
As artes podem não ter mudado, mas Gerald, sim. “É, acho que uma cortina se abriu”, afirma, e arrisca uma explicação química.
Diz que, após o 11 de Setembro, passou a tomar Topamax, um regulador de humor. “Quando escrevi o manifesto, tomava Topamax havia oito anos. Acho que ocorria um efeito paradoxal. Eu estava numa depressão profunda. Parei com o remédio há três meses.”
PENEIRA
Apesar de fazer piadas com os atores e de ser extremamente amável mesmo com aqueles que nunca deveriam ter pisado num palco, Gerald rejeita a versão de que esteja de bem com a vida.
“Antes de chegar aqui, às 14h, eu passo por um holocausto inteiro. Acordo todos os dias com vontade de mudar o mundo. Isso não é estar de bem com a vida.”
Gerald diz que ainda não sabe o tema da peça. Em seu método de trabalho, ele primeiro escolhe os atores, o que concluiu na semana passada. Depois, escreve textos específicos para cada um deles, influenciado pelo histórico de vida desses atores.
Tem certeza de que falará sobre algo da atualidade. “Eu também sou repórter. Sou viciado em jornal. Sempre coloco algo da atualidade nos meus trabalhos.”
Sua escolha dos atores foi trabalhosa. Ele ouviu umas 600 pessoas. Ficou com um grupo de 40 para uma semana de exercícios intensos.
Fez com que repetissem dezenas de vezes trechos de um texto que misturava Kurt Cobain, Calderón de La Barca, Franz Kafka, Mick Jagger e Pilatos. Sobraram 26 pessoas -três brasileiros, três franceses, uma italiana, uma portuguesa e 18 britânicos.
Gerald foi para Nova York, onde é diretor-artístico do La MaMa, teatro no East Village. Volta a Londres em três semanas, quando começam os ensaios. Até lá, vai escrever, pensar no cenário, na luz, na trilha sonora.
Um produtor busca patrocínios e um teatro para a estreia. “Podemos estrear no National Theatre ou num lugar pequeno, para poucas pessoas. O que importa é que vou recomeçar do zero. Não é apenas uma volta. Preciso me reinventar.”
RAIO-X
GERALD THOMAS
VIDA
Nasce no Rio de Janeiro, em 1954. Formado em filosofia, iniciou a carreira teatral em Londres, dividindo-se, a partir daí, entre EUA, Brasil, Inglaterra e Alemanha
OBRA
Destaca-se por renovar a cena do teatro brasileiro a partir dos anos 1980, especialmente após criar a Companhia de Ópera Seca, com a qual desenvolve uma dramaturgia paródica e desconstrutivista. Se destacam trabalhos como “Um Processo” (1988), baseado em Kafka, e “The Flash and Crash Days” (1991), com Fernanda Montenegro.
Gerald faz ensaio-show e magnetiza elenco
DE LONDRES
Um grupo de 40 atores tem uma missão: encantar um diretor premiado internacionalmente para fazer parte de sua companhia.
Num prédio onde funciona um estúdio para gravações, no leste de Londres, eles se esforçam. Dividem-se e encenam um texto que pouco compreendem.
Ao verbalizar frases sobre quebra das liberdades individuais, tortura, falsa sensação de segurança etc., alguns apelam para a comicidade, outros apenas gritam.
Gerald Thomas sabe que há alguns muito talentosos e outros muito ruins. Mas não é apenas talento que conta. “Eu preciso dessa irregularidade. Não se faz um bom espetáculo só com estrelas.”
Entre os bons estão Kevin Golding e Angus Brown, ambos britânicos, e Maria de Lima, uma portuguesa que faz teatro há 20 anos e vive em Londres há 12. Ela tem um rosto forte e olhos que não param e que parecem falar mais do que a boca. “É um bicho. É meio homem, meio mulher”, resume Gerald.
A atriz diz que o trabalho com o diretor é imprevisível. “A gente nunca sabe o que vai acontecer, é surrealista.”
SHOW DO DIRETOR
Já Brown, que também está no meio teatral há 20 anos, elogia o modo pouco conservador do diretor. “Seu trabalho é muito diferente do que a gente vê por aqui.”
Todos estão tentando ser estrelas, mas, nesta fase, o show é do diretor. Gerald se joga no chão, imita trejeitos de alguns, conta piadas e, às vezes, marca o tempo das falas com batidas de pé, como se estivesse regendo uma orquestra. Sobretudo, dá aula -de interpretação, história da arte, música, teatro…
Sem perder o fôlego, cita Schoemberg, Wagner, Shostakovich, John Cage, Philip Glass, Beethoven (música); Peter Brook, Ellen Stewart, Bob Wilson, Pina Bausch, Aristófanes, Samuel Beckett e Peter Stein (teatro); Pollock, Duchamp e Damien Hirst (pintura), entre outros.
A “plateia” delira, ainda que muitos não conheçam metade dos nomes. Alguns olham para o diretor como se estivessem num culto. Nem piscam. “Se eu perceber que me veem como um líder religioso, vou embora e não volto mais. Odeio isso”, afirma.
Mas Gerald admite que a relação com os atores e candidatos a atores às vezes é tão prazerosa quanto o resultado final de uma peça. (VM)
Frases
Não posso voltar igual. Tenho agora uma grande chance de voltar do zero, de me reinventar
Tenho interesse de atingir o jovem de 18 anos que vai ao teatro com Ipod no ouvido. Eu quero formar pessoas
Sempre odiei o teatro londrino. Eram sempre pessoas sentadas em volta de uma mesa, com luz frontal. Não tinha imaginação nenhuma
GERALD THOMAS
diretor e dramaturgo
Diretor prepara ópera com John Paul Jones, baixista do Zeppelin
DE LONDRES
Por enquanto, foram em almoços e jantares que Gerald Thomas e John Paul Jones, baixista do Led Zeppelin, discutiram a ópera que pretendem criar juntos.
Agora, concordaram em passar duas semanas trancados em Nova York para fazer o projeto deslanchar. “Vamos ficar no forno. Daí, vai sair algum pão”, diz Gerald.
Eles ainda não fecharam o tema. Gerald sugeriu algo sobre o vazamento de petróleo no Golfo do México, um dos maiores acidentes ecológicos da história.
Jones achou ótimo; poderiam falar da Lousiana, de Nova Orleans e incorporar levadas de blues, ritmo que encanta o baixista e é a base de muitos sucessos do Zeppelin.
Mas tudo continua em aberto. A única certeza é evitar os tons muito agudos. Não haverá tenores ou sopranos. “O que faz todo o sentido para um baixista. Mas eu também prefiro os tons mais graves”, afirma Gerald.
Jones foi um dos ídolos do diretor na juventude. “Foi um enorme prazer vê-los [Led Zeppelin] tocar nos anos 70. Eles eram monstros. Eram geniais. Com exceção do Robert Plant (vocalista).”
Gerald tem uma vasta experiência com óperas, que dirigiu no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.
É com uma ópera que considera ter atingido o ponto máximo de sua carreira: “Moisés e Arão”, de Arnold Schoenberg, que encenou na Áustria, em 1998, com mais de 300 pessoas em cena. (VM)