
PEDRA DE TOQUE
Nova York – Londres. Quando eu atravessava a ponte de Williamsburg, na madrugada de 11 para 12 de setembro de 2001 em direção a Ground Zero para ver se conseguia chegar ao monte de ruínas daquelas duas torres que eu vi crescendo, lentamente, andar por andar, e depois ruindo, numa só explosão, numa só exploBUM. No chão aquele monte de ferro retorcido, foi o que sobrou daquelas duas torres.
Sim, aquelas duas torres com cara de nada, a cara da geração de Warhol retorcida e derretida no chão, o impacto bateu no meu fígado, pessoas passavam desnorteadas em todas as direções.
Meus olhos procuravam se fixar nos rostos menos retorcidos que eu podia achar. Um passarinho morto no chão, um passarinho irmão, morto e empoeirado e seco hoje, nessa tentativa de atravessar essa ponte para ir até Ground Zero.
Toda aquela poeira me cobria e parecia a poeira de todo o século XX. Era a poeira deixada de tudo aquilo em que eu acreditava no século que acabava de ser fechado, assim como eu fechava as cortinas depois de espetáculos empoeirados e com igual quantidade de fumaça!
Minha cabeça naquele dia estava suicida.
Eu, meio quase nada estava atravessando aquela ponte, atravessando em braile em direção a um monte de ruínas pegando fogo. E eu caminhava naquela direção para conferir o quê? As pedras no chão?
Há não sei quantas horas o World Trade Center caiu. Quando criança, eu abria a porta do armário e brincava com as ruínas ou detritos do Lego e me encurralava para dentro da cama ou pra dentro daquele imenso armário barroco que virou o meu “teatro”, a minha “arena de ações fictícias” onde bonecos e cabides e volumes quaisquer e velas faziam uma verdadeira mise-en-scène. O barulho das torres caindo assim como o das crianças na rua jogando bola era ensurdecedor e eu queria estar onde os mendigos estavam, onde as ruínas estavam, onde os “rejeitados” estavam porque sentia que não teria pique para aguentar essa farsa.
Era tanta coisa! O desmoronamento que eu havia presenciado naquele dia culminou numa espécie de êxtase, aquele que leva as pessoas a um clímax coletivo.
Me aproximando lentamente, muito lentamente das ruínas do Ground Zero, aquela confusão toda, gente por tudo que é lado, minha reação foi estranha. Virei para trás. Quis dar meia-volta e retornar, mas paralisei. Se alguém estivesse vendo as minhas pupilas dilatadas talvez estivesse vendo a Guernica revivida, as vacas da tela de Picasso apagando aquela lâmpada, ou então a Europa depois da chuva de Max Ernst mais destruída ainda, sei lá, não sei o que (d)escrevo.
É avassalador como algumas obras de arte têm o poder de invadir nossas cabeças nesses momentos de tragédia. Ruínas dessa proporção parecem que têm esse poder. Será que a destruição do poder também terá esse poder? Me aproximei. Assim como uma criança ou um ser apaixonado ou apavorado, acabo de ter aquele ataque de lucidez, absoluta lucidez a meu respeito, digo: me percebi “perecível”. Minhas feições, troncos, membros e – até então – uma curta existência eram todos uma ruína em plena paranoia.
Cheguei lá nas ruínas, nas tais ruínas que Beckett tanto descreve em sua prosa e em sua dramaturgia were the ruins still there where you played as a child, when was that da peça That Time (Aquela Vez) na qual dirigi Julian Beck também aqui em Nova York há 23 anos. Julian, nas últimas, era uma “ruína” em si.
Quimioterapia e câncer no corpo inteiro, seria a primeira vez em que Beck pisaria fora do seu “Living Theatre” e me convidou para dirigi-lo. Isso é, até hoje, um ponto de interrogação na minha vida. Logo eu? Juntei Beck com Beckett e comecei esse louco processo metalinguístico que conta uma verdade dentro de outra e cria mais de uma camada de leituras: o ator estava doente e o público, seu imenso público, sabia disso. A peça só mostrava a cabeça de uma pessoa imóvel ouvindo vozes de três fases diferentes da vida do passado dessa pessoa. A combustão era estarrecedora: “Se a ruína ainda estava lá onde você brincava em menino, onde foi aquilo?” O público ouvia isso e achava que seria a última vez. E foi. Logo depois da nossa apresentação aqui no La MaMa, fomos para Frankfurt e Julian morreu durante a temporada, digo, na volta de Frankfurt.
Nas ruínas em chamas do WTC, bombeiros, polícia e todo tipo de isolamento possível, mas, de alguma forma, entrei. Sentei e chorei pelo dia intenso de perplexidades. Se soubesse então o que sei agora, o que teria feito? Mas o que sei agora? Iraque? Conspirações? Politicagens?
Quando levei meu pai de volta para Berlim, o “Muro” ainda não tinha caído. Meu pai não tinha voltado para sua Berlim desde a Guerra. O que se via do lado de cá, do “nosso” lado ocidental olhando para a Berlim Oriental (de binóculos) eram ruínas, arame farpado e guaritas com soldados e alguns coelhos andando entre os dois muros. O Muro eram dois, com minas, caso alguém conseguisse pular. Cento e cinquenta mil tentaram. Baleados, calados, furados, peneirados, eles podem contar uma história tão sórdida quanto o resto das divisões geopolíticas das tantas Europas, com suas emboscadas étnicas que terminam assim, com um tratado entre tratantes. Antes da Primeira Guerra, ou pós-Segunda Guerra, ou entre uma e outra, as fronteiras inimagináveis agora eram mais que imagináveis e até amigáveis. Mas entre a imaginação e a assimilação, morrem milhares de seres humanos. Ah, sim, e cavalos.
Meu pai, plantado em cima daquelas plataformas de madeira, seja numa das extremidades de Berlim Ocidental ou noutra, calado, sempre calado, não conseguia reconhecer sua cidade. Ou melhor, entendia e sofria tanto, tanto que nada dizia. Uma sensação bem parecida com a criatura beckettiana que o Julian interpretou três anos mais tarde em That Time – nada dizendo, somente apavorado como “se as ruínas ainda estavam lá onde eu brincava…”
Meu pai não sobreviveu para ver a queda do Muro. Morreu acreditando para sempre em sua Berlim dividida, cortada ao meio cirurgicamente, ou ilhada, seja como queira ser visto o Muro pichado, sua Berlim dividida entre aliados e russos. Morreu no meio da temporada, entreatos.
Ground Zero. Peguei uma pedra no chão. Não sei se era, de fato, um pedaço do World Trade Center, mas quero acreditar que sim.
E com ela sentei numa pilha de poeira, ou melhor, de ruínas, e chorei o resto da madrugada. Até que a polícia me deu um macacão amarelo de trabalhador e me disse get to work e me puseram para trabalhar.
Nesse momento acho que entrei em delírio: como assim, get to work? Não consigo sair desse paradoxo circular, ou seja, esse som de bomba que foram os aviões batendo, ou as guitarras de Hendrix tremendo no Fillmore East aqui perto há trinta e oito anos, e esse barulho de novo nos meus ouvidos como se fosse uma ordem ao contrário, com eco e tudo: “Eu não aguento mais” e – como se plagiando Lapoujade, sinto tudo aquilo contra o qual devo me defender – GET TO WORK! Como assim??? Me defender das torres caindo e da pedra na minha mão, daquilo que meu corpo sofre e me faz sofrer, dos outros caminhando em vão na minha frente empoeirados fedendo a morte? Fui, de fato. Fui trabalhar lá, onde as ruínas estavam. Mas não fui brincar.
Me sinto o último dos últimos, e sem a menor identidade e, nesse momento quero mandar todos à merda num único e último banquete: desde Nietzsche a Deleuze. E aqueles a quem Nietzsche chama de homens superiores… Superiores é a merda. Vem para cá Herr Nietzsche. Vem ler essa frase aqui:
“Não aguento mais.” Que tal? Em qual Trieste triste estás agora, Sr. Nietzsche? Ou será que ainda estás sentado debaixo do piano de Wagner encantado pela overture de Tannhäuser? Nada disso. O cavalo que o senhor viu sendo espancado eu vejo todos os dias nos rostos de todas as pessoas. E as catástrofes? Eu as vejo em todos os momentos. E em todos os lugares. Sim, seus planetas são ótimos, seus Zeuses, Deuses, “Dioneuses”, “Zaragogos”, e “Demitustras” são ótimos e assim são os seus superlativos, mas “não aguento mais”. Essa foi a sua melhor frase, com ou sem sífilis. Essa é a minha melhor frase com essa pequena pedra que seguro ainda quente em minha mão.
Me lembro um dia, acho que era em Zagreb durante um festival de teatro, que parei de me emocionar. Ouvi histórias de croatas e de servo-croatas baleados e feridos pelos recentes conflitos (melhor chamá-los de atrocidades), e me concentrei num garoto que contava que acabara de voltar de Dubrovnik, e aprendi a apreciar a simplicidade e a beleza com que as pessoas se despiam e caiam no mar, sabendo que estavam sendo vistas. Apesar de notar que uma gota de lágrima ou algo salgado entrava na minha boca, esse tipo de beleza sensual, sexual, esse tesão que as guerras provocam da mesma forma que um pulo n’água de um corpo lindo e nu.
Surgiu a oportunidade: o World Trade Center – além da porrada dos aviões dos islâmicos radicais – pode ter sido dinamitado, suas vigas de ferro fortíssimas serradas em diagonal cautelosamente. É o que os demolidores profissionais chamam de molten metal. Eu vi essas vigas diagonalmente cortadas apontadas lá para cima, sobrando, enquanto multidões tentavam salvar outras tantas multidões como em The Lost Ones, de Beckett. Não, não pode ser. Pare de delirar, Gerald. Pare de tentar ser um Nietzsche. Você leu demais. Você devorou muitos livros e, portanto, não sabe, como nunca soube, lidar com a realidade. Tudo para você parece sempre um conto, uma ficção, mas isso aqui é Ground Zero e não um conto de Kafka.
Estar sentado num monte de ruínas, com aqueles holofotes em Ground Zero era bastante indescritível. Até hoje, nove anos depois, procuro achar um termo para isso, mas não o encontro.
Hoje escrevo as minhas próprias peças e olho para esse East River, ou esse Tâmisa, de onde não consigo sair há décadas, seja de um lado ou de outro, de Brooklyn ou de Manhattan ou Londres e que não parece mudar, o que parece um paradoxo ou um conundrum, porque rios sempre mudam (riverrun – palavra que abre Finnegan’s Wake, de James Joyce), na literatura portuguesa e irlandesa, como se fossem cavalos líquidos, uma equitação vertiginosa, uma sensação de tempo passando física e podre e um tanto quanto linda. Digo, assim deveriam ser os rios. Mas essa porra desse East River não muda em nada. Esse Thames também não. Às vezes olho por horas e nada. Nada nada nele. Nem um corpo boiando desde que Spalding Grey se suicidou nele em 2004.
Sabe, existe sim um momento onde tudo isso, todas essas andanças, todas essas comilanças, todas essas angústias e paranoias levam a algo. O que é? Estranho. Não sei dizer ao certo. Mas é como se eu caísse em mim por alguns segundos. Por alguns segundos apenas. De novo, a tal lucidez. Por esses segundos tudo para.
Eu tento desesperadamente segurar esse momento, como se ele fosse desaparecer. Parece que recebi meu primeiro sopro de vida. Quando? Não sei. O que eu sentia sentado em Ground Zero ou olhando o outro lado de Berlim ou pensando em Sri Lanka ou em New Orleans engolida por um tsunami ou pelo Katrina.
Uma voz vinda de Auschwitz, uma voz vinda de uma foto de um familiar exterminado lá: olho no olho no meu próprio passado, digo, no olho da foto do meu próprio antepassado e nada sinto. “Que judeu de merda você é, Sr. Gerald!” “Estás aqui no Pavilhão 17 olhando essa pilha de sapatos, cabelos, óculos e os catálogos e consegues identificar teus parentes e nada sentes?” Ruínas. Um monte de ruínas organizadas em cubículos de vidro e madeira com plaquinhas. Para quê? Para que a História não se repita? Não me façam rir. É como falar em ética hoje em dia: um toll free number chamado dial-ética está em perigo.
Passando o portão onde – até hoje os poloneses mantêm a metálica inscriptia art-nuveaux Arbeit Macht Frei, só pensei em forrar a barriga: e logo com o quê? Eu só tinha duas opções: uma barraquinha de sorvetes e outra com hot dogs. Nada kosher, mas estava pouco me lixando. Eu queria comer um cachorro-quente e assim o fiz. Sim, depois de ver os membros da minha família exterminados me deu fome. Fazer o quê?
E que cachorro-quente! Convulsionei.
“Wer fremde Sprachen nicht Kennt, weiss nichts von seiner eigenen”: Pronto, devo ter murmurado algo em “goethesprache” para deixá-los ainda mais de boca aberta.
“Quem não conhece línguas estrangeiras nada sabe sobre a sua própria”, é linguagoethe! Ou dollargoethe, ou eurogoethe ou, na época, marcogoethe ou pontogoethe, ponto zero, Ground Zero: Auschwitz, para calar aqueles que não calam na hora certa, como eu. Eu, uma pedra na mão, mas nenhum mandamento, nenhuma ideia, somente um nó na garganta, esperando nenhum Godot ou nenhum Moisés, ou sequer um semiólogo.
Não. Era 11 ou 12 de setembro, mas dessa vez com uma pedra histórica entalada na minha garganta.
Tudo em nome de limpeza étnica. Seres humanos se livrando de uma pele que não gostam, ou que repugnam, ou se olhando no espelho e se livrando de algo a respeito de si mesmo que os repugna.
Sentado em Ground Zero ou em pé com meu pai na plataforma que olha de uma Berlim para outra, não tenho esperanças. Hoje, quando escrevo, com o Iraque do jeito que está, e prestes a invadirmos o Irã, menos esperanças ainda.
Como pode algo assim ser destruído? Minha obsessão em preservar é doentia. Fogo, brigadas de incêndio, o incêndio em si, terrorismo, esse megaincêndio que consome agora o sul da Califórnia é algo que me deixa doente. Com água eu ainda consigo lidar, mas fogo é algo que…
Não sei por que, com a pedra na mão, sentado ali no rubble do World Trade Center me vinha à cabeça aquela curva da King’s Road em Londres, chamada de world’s end (fim do mundo), e me vinha à cabeça o arco “Arbeit Macht Frei”.
Pouco resta a ser dito.
E agora, com tudo isso e mais na cabeça, penso em George Bush como um Inquisitor, um real raivoso evangélico que em seus aforismos não faz alegorias, incapaz de fazer fantasias, é um militante religioso daquilo que representa o seu Sol, seu solstício, um mito do zodíaco transformado em homem e transformado em mito de novo, pois homem não tem ressurreição. E nessa cruzada capitalista pelo poder
do petróleo e pelo domínio, ele deve achar válido o sacrifício de vidas humanas, assim como em todas as religiões as vidas humanas não valem nada, frente à vida desse que é a personificação do sol, o filho de Deus, a antropomorfização de um símbolo numa catarse maior demiúrgica ou demagoga, a reflexão de um ser superior que espelha as constelações e seus discípulos e é sacrificado por suas profecias. Pobre Jesus!
Quando não penso em nada, penso em Goethe, não no escritor, não no poeta e não no cientista, mas no modernista, naquele que começou a romper com seu passado. Não, isso não é verdade. Quando não penso em nada, não penso em nada e pronto. Que absurdo dizer que penso em Goethe! Que arrogância!
Mas é que, de certa forma, meu pai lia Goethe para mim, quando eu era algo antes de criança e brincava nas ruínas daquilo que eram os sons do “holocausto na cabeça”, as memórias que a família trouxe e que nos acompanharam por tudo que é lugar. Essa linguagoethe me era cantada sim, e de alguma forma isso ficou aqui dentro como música. Se destruí o meu passado, ou fiz meu pacto com o futuro, ou com o meu palco por causa disso, bem, isso é para as pedras ou para os psicanalistas e acadêmicos decidirem.
Hoje os inventores são cientistas anônimos e os intelectuais são somente repetidores, acreditem.
Pedras na mão, ou obstáculos que chutamos por aí sem nos dar conta. Olhar para cima, às vezes nos faz bem. Existe um céu, quando não há incêndio ou alguma fumaça ou nuvem nos impedindo a visão do céu claro ou do universo.
Me encontro sempre assim: sentado, ou de cócoras, seja com uma pedra na mão ou jogando pedrinhas ou olhando um monte de ruínas de um prédio colapsado. E a pergunta perdura. E daí? Se construí uma obra teatral, sempre volto para o ponto de partida que é HOJE, que é o NADA, que é esse vazio enorme aqui em Nova York, onde me falta TUDO… onde não tomei precauções para para ter água mineral suficiente, onde estou em estado de euforia, ansiedade e depressão.
Nada mais me resta a dizer, senão um muito obrigado por tudo que tive a chance de enxergar através dessa enorme cegueira que sou eu mesmo.
Sempre irei tentar colocar uma âncora em algum lugar, ou melhor, me ancorar em alguém ou em vários “alguéns”, mas a solidão é algo insuportável, assim como um palco vazio, ou uma tela em branco ou uma página em branco, ou duas torres brancas que predominavam no meu skyline, tombado, sim, tombado no seu sentido mais perverso. Não, âncora nenhuma não. O palco estará vazio ainda ou redundante até que se resolva essa loucura que é a finitude da vida. Quero andar em cima da minha dor, mas ainda assim tocando o samba, que tão bem sei tocar. Dúvida? Pergunte ao Ivo Meirelles. Toco, e com muito orgulho, todos os instrumentos, com as duas mãos, na superfície de uma mesa como poucos cariocas sabem batucar!
A despedida é algo com a qual – nessas décadas todas – ainda não aprendi a lidar. Seja dizer “adeus” a uma pessoa ou a uma cidade.
Essas caminhadas pelo mundo não me levaram à toa por aí. Levaram meu teatro… tudo porque eu cresci e chorei junto com meus pais tantos fracassos e tantas mentiras de uma família em pedaços, em ruínas, nunca tendo exatamente um rumo certo, nunca tendo exatamente uma certeza de que “eles” não iriam marchar contra nós no dia seguinte apontando o dedo no nosso nariz dizendo “amanhã estaremos de volta, uniformizados, e vocês serão cinzas”.
Ouvi isso durante aquela noite inteira de 11 a 12 de setembro de 2001. Mas e agora? Talvez por esse motivo a minha pressa louca em atravessar a Williamsburg Bridge e atravessar as barreiras militares e policiais para conseguir um pedacinho de detrito, e sentar no chão de poeira, de rubble, de cinzas, pedaços de corpos fervendo naquele instante ainda, uma cidade zumbi: um pedaço de pedra na mão. Muros, prédios, obstáculos, fumaça, cortinas, armários, coisas escondidas, tudo parte de uma geração que enfrentou, assim como eu enfrentei, as filas de carro em Checkpoint Charlie ou em Bahnhof Friedrichstrasse, tentando ir para o lado oriental de Berlim.
Liberdade? A liberdade dos produtos. A liberdade do consumo! Em três minutos, o mundo mudava três décadas e saía do regime de Honecker com seus peixes podres dos supermercados “marxistas” (que piada!), e voava-se diretamente para o grossen laden KDW, e seu último andar luxuosíssimo onde se come de tudo.
Foram tantos os países e tantas as línguas. E para quê? Juro que não sei responder. Se houvesse um ato triunfal no final de tudo, algo heroico, eu seria o primeiro a querer dizê-lo. No muro das lamentações, em Jerusalém, me dei conta, talvez pela primeira vez na vida, de que eu era capaz de ouvir o canto dos passarinhos. Achei irritante. Mais irritante ainda a Mesquita que fica do lado de lá, irradiando pelo alto-falante cantos islâmicos para irritar os passarinhos e os judeus ortodoxos que ali se curvam e, num movimento mântrico, não param de se mexer, de trás para a frente, de frente para trás.
Ali me dei conta de que todas as pedras que segurei esses anos todos estavam todas lá, amontoadas.
Todas as pedras numa só pedra. Não é metáfora, principalmente porque todas aquelas pedras estão, de certa maneira, seguras pela megapedra de Herodes, aquele mistério pesado, enigmático, emblemático, tal qual as pirâmides, só que no subterrâneo do muro das lamentações. Isso, em Jerusalém, aconteceu quatro meses antes dos ataques de 11 de setembro de 2001.
Mas e agora? Perdi de vez a inocência, demoli tudo. Eu e nós mesmos. E em meu lugar? Pedaços de mosaico que não consigo mais reconhecer como sendo meu. Procuro loucamente quem sou e/ou como somos. Não tenho respostas. Nossas identidades? Um caos. Estamos espalhados a refletidos, como esquizofrênicos, nós, eu, você, em cérebros de outros, como se não habitássemos por inteiro aqui dentro. Como se quiséssemos fazer alguma diferença no mundo de hoje, como se nosso berro não fosse aquele de Munch, o silencioso, como se ainda tivéssemos o poder do protesto de Dylan, de Abbie Hoffman, de Hendrix, mas estamos soltos e nossas mentes com plugs de iPods, como se fossem rolhas para não deixar escapar pelos ouvidos o que nossas bocas querem berrar.
Nossas solidões estão todas medicadas. Não há ninguém desacompanhado de um discurso horrivelmente triste, mesmo aqueles com um sorriso estampado na cara ou com sessão marcada com seu psicanalista ou com seu traficante ou em seu quarto escuro e com sua medicação legal.
Somente ruínas.
Porque uma vez eu abri o armário quando menino e brincava de fazer teatro com as poucas coisas que tinha, com medo da rua: medo dos automóveis cujos pneus, sem querer, jogavam pedras para lá e para cá e machucavam pessoas, me machucavam.
Pedras, mendigas, armários barrocos onde eu achei meu “drama” por pura covardia, mas tudo isso deve estar lá onde eu brincava quando menino.
Mas onde será que foi aquilo?
22/09/2010